domingo, 11 de outubro de 2020

Dissabor



Questão de gosto

Tinham acabado de lançar a água sanitária Super Globo, o rádio toda hora fazendo propaganda no intervalo das modas de viola. Altino Limeira era ouvinte cativo dos programas caipiras e, de tanto escutar a tal propaganda, foi ficando curioso. Um dia firmou o propósito de conhecer o novo produto na sua primeira ida à cidade.
Por isso, mal acabava de chegar a Lagoa Grande naquele domingo, foi direto ao Bar Polar, com vista para lagoa. Entrou, sentou no lugar de costume, de onde podia apreciar o movimento dos patos nadando e o povo andando de canoa. Refestelado na cadeira, Altino tirou uma tragada do seu fumo goiano – reservado para ocasiões de mais cortesia – deu um suspiro e pensou: “Êta vidinha boa!”
Para completar faltava pouca coisa. Então gritou o Mariano, que sempre o atendia:
– Vê aí pra mim uma Super Globo bem gelada. Ligeiro, que eu ando doido pra provar esse negócio!
O rapaz não sabia o que fazer. Limpou o balcão, espantou um mosquito com o pano, foi enrolando para ver se o homem desistia daquela ideia amalucada.
Teve que atender um pessoal que estava na mesa ao lado da do fazendeiro. Este então falou enérgico com ele, os dois punhos fechados sobre a mesa e o olhar queimando de raiva: 
– Tá brincando comigo? Cadê minha sanitária?
Apertado, Mariano respondeu:
– Já vai. Só um momentinho...
O velho não estava para brincadeira. Puxou um maço de notas do bolso, jogou na mesa e esbravejou ofendido:
– Meu dinheiro é tão bom quanto o dos outros! Quero beber essa merda dessa Super Globo agorinha, mesmo sem estar gelada.
Mariano viu que a coisa estava séria. Correu até a venda do lado, comprou uma garrafa e a colocou aberta na mesa do Altino, sem coragem de dar uma explicação ou de derramar o líquido no copo. Ficou com medo da reação do velho.
Altino Limeira então pegou a garrafa num gesto ávido, encheu o copo e virou na boca com vontade. Engoliu, fez uma careta horrorosa e exclamou decepcionado:
– Quá! Tanta propaganda, e nem por isso...
Passou seis meses a leite e biscoito de polvilho. Perdeu o gosto por moda de viola e a fé em qualquer novidade.

Texto adaptado do livro “Casos de Minas”, de Olavo Romano.
Págs. 53 e 54.
Edição: 1982

Livro - Casos de Minas

A memória de Minas Gerais recuperada em histórias e "causos" populares. Textos fluentes e com humor. O autor vai no fundo de sua memória e de lá resgata certas coisas que ele gostaria que não morressem: um som particular, um cheiro impregnado, bichos, gentes, situações. Ele não cai na arapuca das descrições, narra apenas. O estilo é limpo, sem maquiagem, e encaixa perfeitamente com as histórias. A sabedoria, a malandragem, a essência do homem de interior – está tudo aqui, inteiro e intacto. E sua linguagem é respeitada, sem deformações gráficas.

2 comentários:

  1. E ele ainda tinha que agradecer por não ter batido a pacuera... Ki loko!

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  2. Quando cuspiu no chão fez um buraco? Esses causos do Olavo Romano são ótimos.
    Abraço do Universo

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