Andança
Depois de muitos anos, fui visitar tia Chiquinha. Ela continuava na antiga casa da cidade, agora com uma filha viúva. Apesar de quase paralítica e bastante idosa, estava lúcida e gostava de conversar.
Da cama aonde se encontrava recostada, seus olhos se concentraram em mim logo que entrei no seu quarto.
– Entra, meu filho.
Depois de um momento de dúvida, olhou-me melhor e arriscou:
– Ocê é neto do Zezé, não é?
– Sou, sim senhora.
– Filho de qual é?
– Da Julieta.
– E como é que ela tá? Não aparece faz tempo!
– Vai bem! E a senhora, como vai indo?
– Eu? Como Deus é servido. A cabeça tá boa, o corpo é que não vale mais nada. Só saio daqui pela mão dos outros. Fiz tratamento, passei fora um tempo, não adiantou quase nada. Diz o médico que secou o óleo da espinha, fiquei dura das cadeira.
– E dormir, a senhora dorme bem?
– Durmo. E sonho muito.
– Com quê?
– Com lugar onde morei, pessoal que conheci. Outro dia mesmo fui pra perto de Calafate, onde hoje mora o Anselmo meu filho.
– E como é que são as coisas?
– Igualzinho quando a gente vivia lá. A casa, o curral, a horta, tudo como antigamente, não é como agora não.
– E na Chapada, tem ido lá?
– Vou muito. Ontem mesmo fui lá.
– E o que a senhora fez?
– O de sempre: coei café, soltei as galinhas, aguei a horta...
– E moer cana?
– Muita, só vendo. Aquela tacha enorme, melado do pingo e ponto, rapadura.
– Tinha açúcar secando?
– Aquele colosso de jirau, de açúcar com umas pedras clarinha. Daquelas que derrete fácil na boca. Fica cheio de abelha no lugar.
– Que mais a senhora fez?
– Depois do almoço areei panela, aí fiquei olhando o fogão de lenha a passei a mão nele. Tinha uns buraco perto do forninho. Então pensei: esse fogão carece de um conserto, vou pedir Pedrinho pra chamar o Altino aqui em casa. Ele é vagaroso mas de confiança.
– Mais o quê?
– Fiquei alisando o fogão um tempo, sentindo ele na mão. Nessa hora eu acordei. Tava passando a mão nesse travesseiro, assim... meu fogão. Tem hora que eu fico pensando: se o corpo já não aguenta a vida, como é que a cabeça ainda consegue levar a gente pra cada lugar tão longe?
Texto adaptado do livro “Casos de Minas”, de Olavo Romano.
Da cama aonde se encontrava recostada, seus olhos se concentraram em mim logo que entrei no seu quarto.
– Entra, meu filho.
Depois de um momento de dúvida, olhou-me melhor e arriscou:
– Ocê é neto do Zezé, não é?
– Sou, sim senhora.
– Filho de qual é?
– Da Julieta.
– E como é que ela tá? Não aparece faz tempo!
– Vai bem! E a senhora, como vai indo?
– Eu? Como Deus é servido. A cabeça tá boa, o corpo é que não vale mais nada. Só saio daqui pela mão dos outros. Fiz tratamento, passei fora um tempo, não adiantou quase nada. Diz o médico que secou o óleo da espinha, fiquei dura das cadeira.
– E dormir, a senhora dorme bem?
– Durmo. E sonho muito.
– Com quê?
– Com lugar onde morei, pessoal que conheci. Outro dia mesmo fui pra perto de Calafate, onde hoje mora o Anselmo meu filho.
– E como é que são as coisas?
– Igualzinho quando a gente vivia lá. A casa, o curral, a horta, tudo como antigamente, não é como agora não.
– E na Chapada, tem ido lá?
– Vou muito. Ontem mesmo fui lá.
– E o que a senhora fez?
– O de sempre: coei café, soltei as galinhas, aguei a horta...
– E moer cana?
– Muita, só vendo. Aquela tacha enorme, melado do pingo e ponto, rapadura.
– Tinha açúcar secando?
– Aquele colosso de jirau, de açúcar com umas pedras clarinha. Daquelas que derrete fácil na boca. Fica cheio de abelha no lugar.
– Que mais a senhora fez?
– Depois do almoço areei panela, aí fiquei olhando o fogão de lenha a passei a mão nele. Tinha uns buraco perto do forninho. Então pensei: esse fogão carece de um conserto, vou pedir Pedrinho pra chamar o Altino aqui em casa. Ele é vagaroso mas de confiança.
– Mais o quê?
– Fiquei alisando o fogão um tempo, sentindo ele na mão. Nessa hora eu acordei. Tava passando a mão nesse travesseiro, assim... meu fogão. Tem hora que eu fico pensando: se o corpo já não aguenta a vida, como é que a cabeça ainda consegue levar a gente pra cada lugar tão longe?
Texto adaptado do livro “Casos de Minas”, de Olavo Romano.
Págs. 171 e 173.
Edição: 1982
Livro - Casos de Minas
A memória de Minas Gerais recuperada em histórias e "causos" populares. Textos fluentes e com humor. O autor vai no fundo de sua memória e de lá resgata certas coisas que ele gostaria que não morressem: um som particular, um cheiro impregnado, bichos, gentes, situações. Ele não cai na arapuca das descrições, narra apenas. O estilo é limpo, sem maquiagem, e encaixa perfeitamente com as histórias. A sabedoria, a malandragem, a essência do homem de interior – está tudo aqui, inteiro e intacto. E sua linguagem é respeitada, sem deformações gráficas.
Coisa mias linda de se ler, é uma viagem nos sentidos vividos. Mineiro é assim proseia e sonha sem jogar palavras fora, usa o necessário.
ResponderExcluirSe tem uma coisa que ninguém te toma, são so pensamentos e o sonhar, não importa o tempão e as distâncias.
Belo texto.
Grande abraço e juízo (pouco) !
Acho comovente a poesia espontânea e não intencional na simplicidade de algumas pessoas.
ExcluirUm abraço universal.
Valeu, Sylvio.
ResponderExcluirSe vc como historiador e psicólogo tem interesse no tema dos sonhos, recomendo ALTAMENTE "O Oráculo da Noite - A História e a Ciência do Sonho", do Dr. Sidarta Ribeiro. É um neurologista notável vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN. Ele examina o papel dos sonhos na história humana, sua realidade, especialmente pelo viés da neurofisiologia, da psicanálise, da medicina e da biologia molecular, e debate a questão das armadilhas de suas interpretações. Ótimo, mesmo!
Grato pela recomendação!
ExcluirO caso das andanças de Tia Chiquinha faz desejar saborear o libro todo!
ResponderExcluirPara mim esses casos são tão deliciosos quanto comer goiabada com queijo...
ExcluirTrem que não enjoa!