sábado, 9 de setembro de 2017

O rei de Vila Rica


Ilustração: José Efigênio Pinto Coelho
Pág. 43 do livro Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto

Chico Rei
Autora: Angela Xavier

Galanga Muzinga era rei de uma tribo no Congo. Seu reino enfrentava sério problema: os portugueses aprisionavam tribos inteiras e as levavam para o trabalho escravo em terras distantes. O próprio rei, sua família, a corte e os súditos foram aprisionados e levados para embarque rumo a destino desconhecido.
O rei de Portugal não permitia a entrada de pagãos na América. O papa havia decretado que os negros também tinham alma. Um padre jogou um balde d’água com duas colheres de sal sobre 191 prisioneiros, batizando todos os homens com o nome de Francisco e as mulheres se chamariam Maria.
Marcados a ferro em brasa com as iniciais do traficante, os passageiros, sentindo-se abandonados por seu deus Zambi Apungo, foram conduzidos ao veleiro Madalena, que os levaria ao Brasil.
Ali estavam, acorrentados e amontoados, no porão do navio, o rei Galanga, seu filho Zinga, a rainha Djalô e sua filha Itúlu, também toda a corte e alguns antigos súditos. Todos agora igualados no desamparo da escravidão.
Em alto mar, o veleiro encontrou águas revoltosas e fez água. Era preciso aliviar o peso jogando parte da carga ao mar ou naufragariam todos. Esse foi o destino das mulheres, sem nenhuma exceção. Eram mercadorias de menor valor. Os homens não conseguiram impedir. As correntes e chicotes eram superiores à força de suas vontades e desespero.
Chegou ao porto do Rio de Janeiro a carga mais valorizada de 112 escravos homens. O cheiro do veleiro estava detestável! Os negros foram levados, acorrentados uns aos outros, ao mar para serem lavados e tirar a sujeira acumulada durante a viagem. Negros forros, trabalhando de aluguel, cuidaram da limpeza dos prisioneiros. Após o banho de mar, passaram nos escravos buchas molhadas com azeite carrapateiro, depois trataram as feridas feitas pelos chicotes e argolas de couro cru no pescoço. A arte final foi feita com o azeite fino, que dava brilho à pele negra, valorizando a mercadoria.
Começaram a chegar os interessados em comprar negros para os vários trabalhos na próspera colônia brasileira. Um desses era o major Augusto, vindo de Vila Rica para adquirir uma nova leva de escravos para as suas minas. Depois de percorrer todo o mercado, seu capataz separou três fileiras de dez negros cada, entre os quais estavam Galanga, seu filho e parte de sua corte.
 
Foi uma longa e cansativa viagem a pé, através de campos e montanhas, do Rio de Janeiro para Vila Rica. Os pés descalços e os punhos amarrados se feriam e chegavam a sangrar.
Na senzala da casa do major Augusto os prisioneiros se adaptavam à nova realidade.
– Onde estamos? E esse frio que dói os ossos? Que será de nossas vidas? Perguntavam-se.
Galanga, com sua postura de rei, procurava acalmá-los:
– Não perdemos a vida. Agora é preciso paciência. A luta só acaba com a morte. Cada dia de vida é o que nos resta.
Para o major Augusto o novo grupo era sua esperança de encontrar ouro e saldar suas dívidas, que aumentavam com o tempo.
Era o primeiro dia de trabalho de Galanga – que tempos depois passaria a ser chamado pelos brancos de Chico Rei – na Mina da Encardideira, situada na área urbana de Vila Rica. Era um enorme buraco, cavado na montanha, onde os negros entravam e, cavando bem fundo, enchiam um calumbé de pizzara. Depois o traziam para fora onde, na bateia, apuravam o ouro existente.
A turma onde estava Chico se jogou ao trabalho com a vontade de quem deseja cavar uma nova vida, um dia de cada vez. O major sorriu feliz. Nunca tinha apurado tanto ouro. Chico enchia um calumbé atrás do outro, sem se permitir cansaço, para servir de exemplo de determinação para seu filho e conhecidos. Para tornar o trabalho menos penoso, frequentemente cantava músicas em seu idioma, e incentivava a outros que também fizessem parte de um revezamento diário de cantorias para espantar o cansaço e a tristeza do silêncio.
Entre os negros Chico continuava sendo um rei, e o exemplo de sua dignidade e persistência aumentava a esperança em dias melhores. Nas minas do major, onde Chico motivava seu grupo, o trabalho aumentava a descoberta do ouro. Tornou-se um escravo apreciado, não só pelo major, como por outros mineradores que desejavam comprá-lo.
Certo dia, major Augusto foi atacado por três escravos angolanos. O major caiu desacordado e os negros, dando-o por morto, fugiram rapidamente, com receio dos capatazes. O major foi levado para a Santa Casa da Misericórdia, onde foi tratado de seus ferimentos. A recuperação foi longa e difícil; ele ficou com os movimentos limitados em um dos braços e seu espírito nunca mais foi o mesmo.
Chico já falava suficientemente bem o português e era cada vez mais admirado por todos. Tornou-se amigo do padre Figueiredo, que propôs ao major a alforria do Chico, que tinha acumulado o suficiente para comprar sua liberdade. Nas minas, o escravo tinha a possibilidade de conseguir ouro, escondendo-o ou encontrando-o em quantias maiores que a estipulada pelo dono, como forma de motivar a produção.
A contragosto, o major vendeu a carta de alforria ao Chico. Concedeu-a em parte como forma de reconhecimento pelo trabalho que o havia enriquecido, mas também porque se não o libertasse, perderia a motivação daquele singular grupo de escravos que, buscando suas liberdades, aumentavam a prosperidade do major e sua família.
Chico Rei era, agora, um homem novamente livre. Empregou-se na Mina do Pitangui, que ofereceu pelo aluguel de seu trabalho valor um pouco acima dos demais contratados. Aos domingos, o dono da mina permitia que os melhores trabalhadores batessem por conta própria, nos locais que julgassem mais prósperos, dividindo o lucro do dia com o proprietário. No terceiro domingo de trabalho, Chico achou uma enorme pepita de ouro. Com sua parte do lucro, comprou a liberdade de seu filho com o abatido major, que ao fim de sua vida lhe dedicava crescente admiração. Chico tinha então trinta e sete anos.
 
Um dia, resolveu visitar o major Augusto, que se encontrava agora frequentemente doente. O major propôs vender-lhe a Mina da Encardideira, que considerava exaurida, mas que com muita dedicação e um tanto de sorte poderia ainda render um pouco de ouro. Como forma de gratidão pelos serviços prestados, o major afirmou que Chico poderia lhe pagar na medida em que encontrasse ouro. O preço combinado pela mina foi pequeno e a escritura foi passada em nome de Chico Rei, como forma de homenagem.
No dia seguinte ao registro da escritura, Chico e seu filho Zinga começaram a limpar a mina, que se encontrava abandonada. Mataram aranhas e escorpiões, tiraram pacientemente o entulho acumulado e drenaram água de algumas galerias mais profundas. Agora trabalhavam no que era seu, e conheciam bem aquela mina. Esforçaram-se muito até que o ouro se mostrasse. Metal de qualidade, 23 quilates. Combinaram manter segredo e foram enchendo de ouro um grande pote de barro, escondido no fundo da mina. Com esse ouro compraram a alforria dos trinta e sete membros ainda vivos de sua tribo do Congo, que passaram a trabalhar com eles. A Mina da Encardideira tornou-se um pequeno território livre do Congo dentro de Minas Gerais.
Dia 6 de janeiro de 1747 foi um dia de festa para os negros do Congo. Chico e todos os alforriados por ele compareceram à capela de Nossa Senhora do Rosário para agradecer pela vida que levavam então, depois de tanta dificuldade. Fizeram uma grande festa dedicada a Zambi-Apungo, representado no Brasil por Nossa Senhora do Rosário. Foi combinado que, todos os anos a partir daquele seria comemorada sua liberdade e dignidade, conquistadas com perseverança e união. Construir uma capela para Santa Efigênia, a santa negra, passou a ser uma meta para o grupo melhor comemorar sua prosperidade. Os esforços na mina se redobraram para alforriar mais negros e construir o templo, que foi erguido no terreno então pouco valorizado em cima de um morro, após uma íngreme e longa ladeira. Esta ladeira é hoje conhecida como Ladeira de Santa Efigênia, local pintado e retratado por muitos, com suas casas pequenas e simples, mas de uma beleza singular.
Pronta a capela em homenagem à Santa Efigênia, Chico foi coroado rei dentro dela, com autorização do bispo e do governador, com a presença de grande número de negros alforriados. Chico se vestiu nos trajes típicos da realeza africana, tendo em sua cabeça uma coroa de prata enfeitada com ametistas, uma vez que as autoridades não permitiram uma coroa de ouro, destinada aos “reis de verdade”.
Ao seu lado, sua nova esposa e agora também rainha, com quem Chico se casou em Vila Rica. Os participantes desta coroação se vestiram com roupas coloridas, em suas respectivas tradições africanas, com espelhos e chocalhos nos pés, dando o ritmo da dança ao som de tambores e rojões que estouravam. Depois da cerimônia, os participantes comeram e beberam à vontade, tudo por conta de Chico Rei. Essa festa inaugurou o coroamento dos reis do Congado em Minas Gerais.
O festivo cortejo da dança africana passou a percorrer as ruas de Vila Rica todos os anos a partir de então, saindo da Mina da Encardideira e subindo a ladeira em direção à Igreja de Santa Efigênia. Se apenas subir esta íngreme ladeira já é um feito considerável, subi-la dançando, cantando e tocando instrumentos, vestindo pesadas e luxuosas roupas, é algo admirável. Após cerimônia e festa na igreja, o cortejo se dirigia e terminava sempre na porta da prisão de Vila Rica, onde a nova rainha de Chico Rei distribuía presentes aos presos.
Era o Reinado do Rosário! Mesmo após a morte de Chico e sua corte, a tradição se manteve até a década de 1940, quando um bispo achou que aquela comemoração era profana. Aquilo mais parecia carnaval! E proibiu o congado na diocese de Mariana e região, que englobava Ouro Preto e outras cidades da região.
Após a morte deste bispo, esforços foram feitos para resgatar a tradição da Missa Conga e do Congado. Grupos que visitam Ouro Preto vão à Mina do Chico Rei para reverenciá-lo e à igreja de Santa Efigênia. Esses são símbolos fortes, perpetuados na memória popular.

Entrada da Mina do Chico Rei

Interior da Mina do Chico Rei 

Igreja de Santa Efigênia no alto da Ladeira de Santa Efigênia
( Ouro Preto - MG )
Imagem: http://olhares.uol.com.br/foto2698414.html 

Texto adaptado do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier.
Págs. 44 a 49.
Edição do Autor; Ouro Preto (MG); 2009 (2ª edição).

Obs.: Esta postagem foi realizada mediante prévia autorização da autora.

Para mais "causos" e contos de Angela Xavier, acesse o blog dela:
Compartilhando Histórias

Livro : Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto

O livro reúne mais de 70 histórias, ambientadas do século XVIII até início do XX, coletadas junto a moradores ou em livros sobre a cidade. Olavo Romano, responsável pelo prefácio, afirma que "Ouro Preto era cheia de fantasmas, uma cidade mal iluminada, repleta de capelas e cemitérios, onde ninguém saia de casa depois das 21 horas. Trata-se de um livro que narra a História de Ouro Preto de uma forma agradável, à maneira dos contadores de histórias, e está entremeada de lendas e causos. Começa chamando a atenção do leitor para a necessidade de se preservar aquilo que faz parte da nossa memória e relata a descoberta do ouro, os conflitos que surgiram no início e as revoltas". 
A ênfase do livro é dada às histórias dentro da História, nas curiosidades que os livros de História não relatam, na sociedade que se formou ao redor das minas de ouro com suas crenças, seus valores e sua religiosidade. Relatos de grandes festas, de muitos casos assombrados e tesouros escondidos. A ilustração, com desenhos em bico de pena, é do artista plástico ouro-pretano José Efigênio Pinto Coelho.

3 comentários:

  1. Prezado Sylvio, bom dia!
    Gostei muito de seu blog. Obrigado e parabéns.

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    1. Fico satisfeito em saber que meu trabalho agradou, Arsênio.
      Está convidado para ler outros causos!

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  2. Caramba, adorei! Sou fascinado por essas histórias da época da escravidão, tristes, mas, fascinantes! Não conhecia esse livro, já anotei p comprar. Parabéns pelo conteúdo, muito bom.

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