sábado, 3 de dezembro de 2016

A cabeça do Tiradentes


Estátua de Tiradentes
Parte superior do monumento no centro da Praça Tiradentes
( Ouro Preto - MG )
Foto : Sylvio Bazote
( 24 Jan 2014 )

O roubo da cabeça de Tiradentes
Autora: Angela Xavier

Todos conhecem a história da Inconfidência Mineira e seu trágico final. Nosso relato se restringe ao destino da cabeça de Tiradentes.
Depois de morto por enforcamento, ele teve seu corpo esquartejado e colocadas as partes nos locais por onde ele havia passado e falado de suas ideias de liberdade. Era a resposta do governo. Que ninguém mais ousasse se levantar contra a rainha de Portugal! A cabeça, troféu maior, foi salgada, levada para Vila Rica e colocada em uma gaiola presa numa estaca. Era o dia 12 de maio de 1792. No centro da Praça de Santa Quitéria, hoje Praça Tiradentes, ela deveria ficar até que "o tempo a consuma".
Esse fato ocorreu com grande aparato. Tropas de cavalaria se postaram enfileiradas, impondo a ordem e dando um caráter oficial ao evento. O povo se amontoava a certa distância para ver o horrível espetáculo. Na Câmara Municipal, os políticos proferiam discursos exaltando Sua Majestade e maldizendo o "traidor" Tiradentes, que recebera um castigo merecido. Que isto servisse de lição a outros subversivos que ousarem se voltar contra a querida rainha D. Maria I!

E assim se passou. Amaldiçoado pelas autoridades, olhado com temor e admiração pelo povo, Tiradentes cumpriu a sua sina. À tardinha todos se recolheram às suas casas e a praça se esvaziou.
À noite ninguém costumava sair, pois a luz dos lampiões era muito fraca e as pessoas tinham medo de bandidos ou até mesmo de almas penadas. Tudo era silêncio na Praça de Santa Quitéria. Não havia viv’alma por ali. Apenas uma neblina baixa passava lenta, tapando a pouca visão da praça.

Pois nessa fria e escura madrugada a cabeça do Tiradentes foi roubada e escondida em algum lugar onde ninguém jamais a encontrou. Livrou, dessa forma, o alferes da desgraça de ter sua cabeça apodrecendo, em plena praça pública.
Alguns dizem que a cabeça foi embalsamada e colocada numa urna de pedra hermeticamente fechada, depois de ser preenchida totalmente com ouro em pó e enterrada em local desconhecido.
Outros dizem que a cabeça foi roubada por um monge. Ele a guardava numa caixa e retirava de vez em quando para meditar diante dela. Meditação sobre a vida e a morte.
Uma terceira versão diz que Tiradentes tinha uma admiradora que, aproveitando-se da ocasião, sumiu com a gaiola. Sua escrava ficou distraindo o soldado que vigiava a praça, dando-lhe cachaça para beber. 

Fato é que a cabeça original nunca apareceu, mas uma réplica surgiu na Praça Tiradentes, 200 anos depois. Foi quando se homenageou, em 1992, o herói nacional e patrono da Polícia Militar mineira, Tiradentes.
As autoridades planejaram uma festa à altura. Tropas de Dragões saíram a cavalo do Rio de Janeiro pela Estrada Real e foram se revezando pelo caminho.  Homens e cavalos eram trocados até chegarem a Ouro Preto, onde os festejos em praça pública aconteceriam.
A escola de arte local havia providenciado réplicas em gesso do corpo do Tiradentes e da sua cabeça. As partes, braços e pernas foram colocados em pontos estratégicos de todo o centro da cidade. Eram tantas que dariam para formar uns sete corpos. A intenção era impressionar. Pintaram com tinta vermelha nos lugares dos cortes e a tinta fresca ainda pingava pelo chão, dando a impressão terrível de ser sangue.

A cabeça foi colocada dentro de uma gaiola sobre um poste fincado no centro da Praça Tiradentes, bem à frente da estátua do mártir da independência. A banda da Polícia Militar tocou acordes em homenagem ao grande herói nacional. A praça estava cheia, flores foram colocadas aos pés da estátua do Tiradentes, cantou-se o Hino Nacional e os discursos das autoridades exaltavam a grande figura do alferes, exemplo de patriotismo. Terminada a festa pública, a praça foi se esvaziando, a tarde foi caindo, tudo escureceu. Era noite fria e a praça, agora mais iluminada que há 200 anos antes, não tinha o mesmo aspecto macabro.
Naquela noite, uma galeria da cidade havia feito a vernissage de uma exposição sobre Bené da Flauta, extraordinária figura popular que aqui viveu e atuou nos anos 70. Tal evento reuniu artistas e intelectuais e várias pessoas da comunidade, ávidas de recordações dos áureos anos 70 em Ouro Preto.
Lá pelas cinco horas da manhã, dois artistas plásticos da cidade, Gelcio Fortes e José Efigênio Pinto Coelho, chegaram à praça, vindos da exposição. Viram então a cena da praça escura, com a neblina fria se movendo, iluminada pelas luzes dos monumentos públicos com a cabeça do Tiradentes lá no alto do poste, dentro da gaiola.
– Essa cabeça não pode amanhecer aqui! Disse o José Efigênio.
– Ela foi roubada há 200 anos e não amanheceu na praça. Já está quase amanhecendo. Temos que roubar esta cabeça!
O Gê, muito aflito, tentou demovê-lo da ideia, argumentando ser aquela uma festa de militares e autoridades. Qualquer loucura que se fizesse iria acabar mal. Mas não adiantou. O José Efigênio já estava lá no beco do Pilão à procura de uma escada que não encontrou. Decidiu então sacudir o poste, no que foi ajudado pelo Gê. Tanto fizeram que a cabeça caiu, mas ficou presa por uma corda. E agora? O que fazer? Havia uns mendigos dormindo na praça e com eles conseguiram um canivete com que foi cortada a corda. A cabeça de gesso se espatifou no chão. Apressados e nervosos, pois o dia já clareava, os dois juntaram os cacos da cabeça e colocaram na Brasília bege do Gê.
Seguiram para a casa do José Efigênio e bateram à porta. Eram quase seis horas da manhã. Foram atendidos pela esposa dele sonolenta e atordoada com as novidades. Os dois entraram levando os cacos até o fundo do quintal, cavaram um buraco e enterraram a prova do crime. Combinaram que ninguém viu nada e, como há 200 anos atrás, ninguém sabia quem havia sido o autor do roubo da cabeça do Tiradentes. Promessa selada, cada um foi descansar em sua casa, pois a noite havia sido muito longa.
Mas a paz durou pouco. Às nove horas, aproximadamente, a polícia estava na porta da casa do Gê e depois foi a vez do José Efigênio. Ainda sonolentos, os dois artistas foram levados à delegacia.
O delegado era homem vaidoso, vestia-se à moda sertaneja, com cinturão de fivela com cara de cavalo, calça apertada com gorgorão nas laterais, uma camisa xadrez e botas de salto alto.
Ao interrogar nossos artistas, o homem foi duro. Acusou-os de haver roubado um bem público. Aquela cabeça havia sido doada à Polícia Militar e eles foram pegos em flagrante. Algumas pessoas, esperando ônibus do outro lado da praça, viram tudo, e um deles guardou a placa do carro. Quando a polícia começou a investigar o roubo, o carro foi denunciado. Na Brasília do Gê encontraram restos de gesso. Não havia como negar, as provas estavam ali.
José Efigênio ainda tentou explicar ao delegado que eles só haviam repetido o feito histórico de 200 anos atrás, mas o delegado não sabia nada de história e nem queria saber.

A coisa estava nesse ponto quando passou por ali o vereador Flávio Andrade, e quis logo saber o que estava acontecendo. Ciente da situação, levou José à casa dele, onde desenterraram a prova do crime. Aproveitaram para pegar um livro onde estava escrita a história do roubo da cabeça. Telefonaram para o diretor da Escola de Artes que os tranquilizou dizendo que tinha outras cabeças de Tiradentes. Explicaram ao diretor a situação e ele, como amante das artes, gostou daquela "arte" feita pelos dois.
De volta à delegacia, onde havia permanecido o Gê, mostraram ao delegado o livro e pediram que telefonasse ao diretor da Escola de Artes. O delegado assim o fez, no que o diretor lhe disse que existiam outras cabeças e – mentindo – que o roubo fazia parte das comemorações.

Soltos, os dois foram comemorar o sucesso torto de sua louca ação.
De manhã, pessoas que passaram pela praça, vendo a gaiola vazia pensaram:
– Ouro Preto não tem jeito. É terra de vândalos, não respeitam nada.
Outros tiveram reação oposta, como a funcionária do Museu da Inconfidência que, ao abrir a janela, viu a gaiola vazia e suspirou aliviada pensando:
– Que bom que alguém roubou a cabeça do Tiradentes. Era assim que tinha de ser. 
O vereador amigo disse que ficou com inveja, ele gostaria de ter sido o autor do roubo da cabeça. Na rua, por onde passavam, os dois artistas eram cumprimentados. A cidade inteira sabia o que tinham feito através da rádio ou dos cochichos. A maioria havia aprovado. Era a resposta do povo ao autoritarismo de todos os tempos.

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Texto adaptado do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier.
Obs.: Esta postagem foi realizada mediante prévia autorização da autora.

Para mais "causos" e contos de Angela Xavier, acesse o blog dela:
Compartilhando Histórias
http://www.angelaleitexavier.blogspot.com.br 

Livro : Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto

O livro reúne mais de 70 histórias, ambientadas do século XVIII até início do XX, coletadas junto a moradores ou em livros sobre a cidade. Olavo Romano, responsável pelo prefácio, afirma que "Ouro Preto era cheia de fantasmas, uma cidade mal iluminada, repleta de capelas e cemitérios, onde ninguém saia de casa depois das 21 horas. Trata-se de um livro que narra a História de Ouro Preto de uma forma agradável, à maneira dos contadores de histórias, e está entremeada de lendas e causos. Começa chamando a atenção do leitor para a necessidade de se preservar aquilo que faz parte da nossa memória e relata a descoberta do ouro, os conflitos que surgiram no início e as revoltas". 
A ênfase do livro é dada às histórias dentro da História, nas curiosidades que os livros de História não relatam, na sociedade que se formou ao redor das minas de ouro com suas crenças, seus valores e sua religiosidade. Relatos de grandes festas, de muitos casos assombrados e tesouros escondidos. A ilustração, com desenhos em bico de pena, é do artista plástico ouro-pretano José Efigênio Pinto Coelho.
Fonte: http://www.livrariaouropreto.com/lancamentos.html 

4 comentários:

  1. Falta roubar a cama em que Tiradentes morreu, está no museu de Ouro Preto.

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    1. Pô... fui duas vezes no Museu da Inconfidência e não reparei na cama.
      Bom motivo para uma terceira visita.

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  2. Gostei muito! Esta Ângela Leite é a autora de estórias infantis?

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    1. Me parece que o livro dela se propõe atingir jovens e adultos, mas em uma das viagens que fiz para Ouro Preto, encontrei-a no museu Casa dos Contos narrando histórias para uma turma de escola pública com guris de, no máximo, 8 anos.
      Lendo o livro, fiquei com a sensação de que muitos dos textos são elaborados partindo da experiência de contar histórias para crianças e adolescentes.
      Já estou digitando outros contos do livro dela para serem publicados aqui no blog.

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