Pirraça
Na Fazenda da Cachoeira, Seu João e Dona Glória criaram família, casaram os filhos, viram crescer os netos. Já passando dos sessenta, tinham a companhia de Rosa, solteira e quarentona, filha de criação.
Os dois nunca foram de muita conversa entre si. Antigamente costumavam entrar no assunto dos meninos, conversavam por tabela. Casada a última filha, quase já não usavam este recurso: Rosa era ainda mais calada do que os velhos.
Quando chegava algum estranho dava gosto ver João Rufino contando casos de quando veio para Cachoeira ou do negócio dos filhos, cada um prosperando mais. Glória entretinha as visitas falando da criação de peru, cisne e pavão. Era como se fosse pra enfeite ou distração. Daqueles bichos ninguém nunca comia a carne. Aproveitavam só os ossos e as penas que caíam.
Se tinha criança na casa, dona Glória puxava pela mão e sumia na horta até pegar o pavão abrindo roda. Ela gostava também de colcha tecida. Abria uma canastra antiga, ia tirando um punhado, cada qual mais bonita, aquela variedade de desenho e colorido. As filhas levaram as suas quando casaram. Essas ficaram para as netas, uma já quase noiva.
Além de pouco falarem entre si, os velhos ultimamente tinham dado para implicar um com o outro. Na hora de maior azedume, um puxava antigas rusgas, defeitos da família do outro, coisa forte, de melindrar e ofender. Passavam dias sem trocar palavra. Depois, quando abriam a boca, era pra dar novas estocadas, remexer a ferida ainda aberta.
Um dia, por qualquer dê cá essa palha, ferraram briga feia. Palavrões, ofensas, a situação ficou tensa. Rosa pelejando pra jogar água na fogueira dos ânimos e a coisa só esquentando. Seu João saiu pisando duro e jurou: – “Não boto mais os pés dentro dessa casa enquanto esta caninana viver!”. A filha de criação foi atrás, conversaram um tempão na casinha de fazer queijo.
De noite ele foi dormir no paiol. O lugar fedia a suor de cavalo; esquentava o coxinil que enrolou para servir de travesseiro; os ratos chiavam e faziam barulho ao andarem no monte de milho. Mas João Rufino sentia uma secreta satisfação em cumprir sua promessa. Se não fosse pela Rosa, tinha mesmo era sumido daquele lugar para ganhar mundo.
Dona Glória, lá dentro da casa, se espojava na cama “sem ter que encostar no corpo nojento daquele velho sem consideração”, como disse pra Rosa na manhã seguinte.
O velho foi do paiol para o barracão. Rosa levou bule de café e bandeja de quitandas. Tirado o leite, arreou o Príncipe e foi correr a invernada: levar sal para o gado solteiro, curar bicheira de duas novilhas. Empurrava o tempo longe de casa.
Na volta, foi pro paiol. Ficou remexendo milho, quando deu fé o caixote de debulhar estava cheio. Pura inventação de moda para refrescar a cabeça e acalmar os nervos. Daí a pouco chegou Rosa chamando para almoçar. Ele respondeu que estava sem fome. Ela disse que então iria buscar o almoço; ele ficou calado. Logo voltava com o prato cheio de quiabo com angu, arroz, feijão e um molho de ovo com tomatinho de cerca. – “Preparei o quiabo como o senhor gosta, bem refogadinho, sem baba.”
Acabou de almoçar, pegou enxó, formão, martelo, plaina e prego, saiu pelo fundo da horta. Passou a parte da tarde consertando as pás do moinho, fazendo uma grade nova para a boca da setia – na velha faltavam alguns dentes, vivia passando folha e ramo, tirando força da água. Só voltou quando viu o moinho rodar macio, as pás quase voando, água espirrando pra todo lado, até parecia que cantava.
No paiol, guardou as ferramentas e teve a primeira surpresa: Rosa tinha varrido o lugar e, num canto mais protegido, longe do monte de milho, estava um catre com colchão de crina e roupa de cama cheirosa. Do lado, uma mesinha com jarra, bacia e caneca de alumínio. Debaixo da cama o urinol.
A outra surpresa veio daí a pouco. Rufino, avisado da briga, acabava de chegar. Primeiro foi conversar com a mãe. Por lá ficou quase meia hora. Aí subiu pro paiol. Sabia como o velho era arreminado, por qualquer coisinha dava um estrilo. Entrou devagar:
– Bença, pai.
– Deus te abençoe, meu filho. Comé que anda o pessoal por lá?
– Tudo bem, graças a Deus. Mandaram lembrança.
– Brigado.
Olhou a cama, viu a mesinha do lado, disse meio brincalhão: – “Quartinho ajeitado, hein?” João Rufino não respondeu, mas os olhos brilharam levemente.
Rufininho olhou o teto, correu a vista pela parede, observou os buracos deixados para arejar o milho.
– O defeito que tem é o frio da noite. Ainda mais nessa época.
– A gente deita cansado, nem vê frio. – respondeu o velho.
– Que trapalhada esse negócio, hein pai? Como é que vai ficar?
– Pergunta pra sua mãe. Por mim, é melhor assim.
– Mas cada um tem que ceder um pouco. E o senhor – cá pra nós – sempre foi meio turrão, não é, pai?
– Turrão, eu? Tá enganado, meu filho. Eu ando é cansado. Não sei como aguentei esse tempo todo. Acho que foi por causa d’ocês. Por mim eu já tinha era sumido daqui. Fico pensando é na Rosa, coitada.
– Precisa acalmar, deixar de bobagem. De cabeça quente, um ofende o outro até sem querer. O senhor reclama da mãe, mas ela também anda muito queixosa. Nem pôr os pés dentro de casa o senhor pôs...
– Eu já falei que não boto enquanto aquela cobra viver.
Resultado: Rufininho foi embora deixando para trás a mesma situação.
Cidinha, mais chegada à mãe, era caçula das filhas, veio de Barreiro Grande com o marido. Escutou, conversou, pelejou... Voltou sem nada conseguir. Os vizinhos próximos tentaram ajudar. Tudo sem valia. Cada um jogava a responsabilidade no outro e ninguém arredava o pé.
Era meados de junho, tempo danado de frio. De noite João se enrolava na Capa Ideal; Rosa botou mais cobertor no paiol. Dona Glória soube e falou com a filha adotiva, como se fizesse uma pergunta trivial: – “Será que não convém levar mais uma colcha pro paiol?”. No modo dela falar, Rosa sentiu falta do antigo ódio. Desconfiou que tinha até notado um cuidado. Então arriscou responder com outra pergunta, feita dum jeito casual:
– Quem sabe já não é hora do pai voltar?
– Quem saiu de casa fui eu, por acaso?
Rosa foi levar café pro velho, que consertava uma porteira perto da manga de porco. No caminho foi pensando no tanto de coisas feitas naquele mais de um mês que já durava a briga. Sacos e mais sacos de milho debulhado, coisa pouco comum; o serviço era feito a cada dia, tarefinha leve guardada pra depois da janta. Nunca as porteiras estiveram tão boas: as mais velhas foram trocadas, as outras todas consertadas e feita manutenção. As cercas com arame repregado e tensionado, moirões novos em vários lugares.
Dona Glória juntava balaios e mais balaios de fiado de várias cores, resultado de horas sem conta limpando e descaroçando algodão. O trabalho de fazer as pastas – as cardas, ásperas, passando uma na outra, o algodão tomando forma. Aí vinha a roca, sonolenta, o fuso girando, o pé no pedal de madeira, as mãos atentas esticando o fio, dando a espessura certa, testando a resistência. Depois, na dobadoura, os fios virando meada. Em seguida a tintura, o tear, a tecedeira.
Já quase chegando à porteira, Rosa pensou: “Com esse tanto de fiado, mais a lã que põe junto, é capaz de ter um dilúvio de colcha um dia desses.”
Enquanto João bebia o café, Rosa aproveitou para dar um toque, jeitoso:
– Tá esfriando, né pai?
– Tá no tempo, minha filha...
Rosa, olhando o poente avermelhado, emendou:
– Parece que vai gear esta noite.
– Parece – respondeu seco, o pai.
– Quem sabe o senhor não voltava pra casa. Com esse frio... É até perigoso dormir no paiol.
– Palavra de homem não volta atrás, minha filha – cortou ele, decidido.
Rosa voltou sem esperança.
De noite geou forte. João Rufino calçou meia de lã e cobriu a cabeça com a Capa Ideal. O vento assobiava. Achou a cama dura.
Na cama larga, dona Glória custou a esquentar. Quase chamou Rosa para dormir com ela. Depois, achou que não podia dar o braço a torcer.
De manhã cedo, quando foi levar café no barracão, Rosa comentou sobre a noite mal dormida com a mãe, atacada de bronquite.
– Bronquite? – Perguntou o velho.
– Diz ela – respondeu a filha, sem muita convicção.
Do barracão, João Rufino deu uma passada pela cozinha, coisa que não fazia há quase dois meses. Apoiou um pé no rabo do fogão, botou o café para esquentar.
Dona Glória lavava arroz na pia perto do fogão. Deu uma tossida e olhou de lado. João Rufino tinha acabado de voltar o rosto para o lado dela. Ela virou para a pia, ele ficou alisando o gato enroscado no fogão. A mulher tossiu de novo, agora mais forte. O marido falou:
– Bronquite, com esse frio, agrava. Precisa agasalhar mais.
– Tem perigo não.
João Rufino continuou dormindo no paiol, mesmo com o frio. Mas vinha tomar café de manhã cedo, dentro da casa. Dona Glória tinha mandado Rosa falar que, com aquele tempo, esfriava só de levar no barracão.
Três dias depois, quase na hora do almoço, chegou um cavaleiro. Era Teodoro, o Juiz de Paz da cidade. Entra ano, sai ano, sempre reeleito. Muito estimado, o povo apreciava principalmente seu jeito decidido de resolver as questões.
Foi chegando e avisando que precisava falar com os dois. Logo chamaram para almoçar. João Rufino acabou sentado, meio constrangido, ao lado da mulher. Enquanto comia foi direto ao assunto: – “Olha, seu João e dona Glória. Não vou fazer rodeio. Soube do acontecido e achei que já passava da hora da gente ter uma conversa.”
Os velhos olhavam um para o outro, muito sem jeito. Ficaram calados. Quem falou foi Rosa:
– Pois é, seu Teodoro, a gente já cansou de pedir mas não adianta... quem sabe o senhor não põe um paradeiro nesta situação?”
– “Eu vim para isto mesmo! É um absurdo! Então criam uma família que serve de exemplo pra todo mundo, quando chega a hora de descansar em paz, começa esse tipo de coisa? Deixa de ser sistemático, seu João, e volta hoje mesmo pra dentro de casa! Em tempo de pegar uma pneumonia naquele paiol gelado. Como se já não bastasse a bronquite de dona Glória...
Virando-se para a dona da casa, continuou o sermão:
– “E a senhora, entenda: a volta de seu marido não é nenhuma fraqueza. A partir de hoje ele fica dispensado da palavra que deu. Faça o favor de não ficar esquentando a ideia dele depois que eu for embora.
Comeu mais umas duas garfadas, olhou para os dois, ainda calados, e concluiu:
– Preciso viajar logo depois do almoço e quero ter certeza da solução definitiva. Vamos acabar imediatamente com essa bobagem, isso já durou demais da conta.
Os dois nada tinham dito. Entreolharam-se. A resposta, como nascida de um secreto entendimento, veio de uma vez só:
– Palavra do senhor para nós é lei!
Domingo, na missa, levaram um frango para o Juiz de Paz...
Texto adaptado do livro “Casos de Minas”, de Olavo Romano.
Os dois nunca foram de muita conversa entre si. Antigamente costumavam entrar no assunto dos meninos, conversavam por tabela. Casada a última filha, quase já não usavam este recurso: Rosa era ainda mais calada do que os velhos.
Quando chegava algum estranho dava gosto ver João Rufino contando casos de quando veio para Cachoeira ou do negócio dos filhos, cada um prosperando mais. Glória entretinha as visitas falando da criação de peru, cisne e pavão. Era como se fosse pra enfeite ou distração. Daqueles bichos ninguém nunca comia a carne. Aproveitavam só os ossos e as penas que caíam.
Se tinha criança na casa, dona Glória puxava pela mão e sumia na horta até pegar o pavão abrindo roda. Ela gostava também de colcha tecida. Abria uma canastra antiga, ia tirando um punhado, cada qual mais bonita, aquela variedade de desenho e colorido. As filhas levaram as suas quando casaram. Essas ficaram para as netas, uma já quase noiva.
Além de pouco falarem entre si, os velhos ultimamente tinham dado para implicar um com o outro. Na hora de maior azedume, um puxava antigas rusgas, defeitos da família do outro, coisa forte, de melindrar e ofender. Passavam dias sem trocar palavra. Depois, quando abriam a boca, era pra dar novas estocadas, remexer a ferida ainda aberta.
Um dia, por qualquer dê cá essa palha, ferraram briga feia. Palavrões, ofensas, a situação ficou tensa. Rosa pelejando pra jogar água na fogueira dos ânimos e a coisa só esquentando. Seu João saiu pisando duro e jurou: – “Não boto mais os pés dentro dessa casa enquanto esta caninana viver!”. A filha de criação foi atrás, conversaram um tempão na casinha de fazer queijo.
De noite ele foi dormir no paiol. O lugar fedia a suor de cavalo; esquentava o coxinil que enrolou para servir de travesseiro; os ratos chiavam e faziam barulho ao andarem no monte de milho. Mas João Rufino sentia uma secreta satisfação em cumprir sua promessa. Se não fosse pela Rosa, tinha mesmo era sumido daquele lugar para ganhar mundo.
Dona Glória, lá dentro da casa, se espojava na cama “sem ter que encostar no corpo nojento daquele velho sem consideração”, como disse pra Rosa na manhã seguinte.
O velho foi do paiol para o barracão. Rosa levou bule de café e bandeja de quitandas. Tirado o leite, arreou o Príncipe e foi correr a invernada: levar sal para o gado solteiro, curar bicheira de duas novilhas. Empurrava o tempo longe de casa.
Na volta, foi pro paiol. Ficou remexendo milho, quando deu fé o caixote de debulhar estava cheio. Pura inventação de moda para refrescar a cabeça e acalmar os nervos. Daí a pouco chegou Rosa chamando para almoçar. Ele respondeu que estava sem fome. Ela disse que então iria buscar o almoço; ele ficou calado. Logo voltava com o prato cheio de quiabo com angu, arroz, feijão e um molho de ovo com tomatinho de cerca. – “Preparei o quiabo como o senhor gosta, bem refogadinho, sem baba.”
Acabou de almoçar, pegou enxó, formão, martelo, plaina e prego, saiu pelo fundo da horta. Passou a parte da tarde consertando as pás do moinho, fazendo uma grade nova para a boca da setia – na velha faltavam alguns dentes, vivia passando folha e ramo, tirando força da água. Só voltou quando viu o moinho rodar macio, as pás quase voando, água espirrando pra todo lado, até parecia que cantava.
No paiol, guardou as ferramentas e teve a primeira surpresa: Rosa tinha varrido o lugar e, num canto mais protegido, longe do monte de milho, estava um catre com colchão de crina e roupa de cama cheirosa. Do lado, uma mesinha com jarra, bacia e caneca de alumínio. Debaixo da cama o urinol.
A outra surpresa veio daí a pouco. Rufino, avisado da briga, acabava de chegar. Primeiro foi conversar com a mãe. Por lá ficou quase meia hora. Aí subiu pro paiol. Sabia como o velho era arreminado, por qualquer coisinha dava um estrilo. Entrou devagar:
– Bença, pai.
– Deus te abençoe, meu filho. Comé que anda o pessoal por lá?
– Tudo bem, graças a Deus. Mandaram lembrança.
– Brigado.
Olhou a cama, viu a mesinha do lado, disse meio brincalhão: – “Quartinho ajeitado, hein?” João Rufino não respondeu, mas os olhos brilharam levemente.
Rufininho olhou o teto, correu a vista pela parede, observou os buracos deixados para arejar o milho.
– O defeito que tem é o frio da noite. Ainda mais nessa época.
– A gente deita cansado, nem vê frio. – respondeu o velho.
– Que trapalhada esse negócio, hein pai? Como é que vai ficar?
– Pergunta pra sua mãe. Por mim, é melhor assim.
– Mas cada um tem que ceder um pouco. E o senhor – cá pra nós – sempre foi meio turrão, não é, pai?
– Turrão, eu? Tá enganado, meu filho. Eu ando é cansado. Não sei como aguentei esse tempo todo. Acho que foi por causa d’ocês. Por mim eu já tinha era sumido daqui. Fico pensando é na Rosa, coitada.
– Precisa acalmar, deixar de bobagem. De cabeça quente, um ofende o outro até sem querer. O senhor reclama da mãe, mas ela também anda muito queixosa. Nem pôr os pés dentro de casa o senhor pôs...
– Eu já falei que não boto enquanto aquela cobra viver.
Resultado: Rufininho foi embora deixando para trás a mesma situação.
Cidinha, mais chegada à mãe, era caçula das filhas, veio de Barreiro Grande com o marido. Escutou, conversou, pelejou... Voltou sem nada conseguir. Os vizinhos próximos tentaram ajudar. Tudo sem valia. Cada um jogava a responsabilidade no outro e ninguém arredava o pé.
Era meados de junho, tempo danado de frio. De noite João se enrolava na Capa Ideal; Rosa botou mais cobertor no paiol. Dona Glória soube e falou com a filha adotiva, como se fizesse uma pergunta trivial: – “Será que não convém levar mais uma colcha pro paiol?”. No modo dela falar, Rosa sentiu falta do antigo ódio. Desconfiou que tinha até notado um cuidado. Então arriscou responder com outra pergunta, feita dum jeito casual:
– Quem sabe já não é hora do pai voltar?
– Quem saiu de casa fui eu, por acaso?
Rosa foi levar café pro velho, que consertava uma porteira perto da manga de porco. No caminho foi pensando no tanto de coisas feitas naquele mais de um mês que já durava a briga. Sacos e mais sacos de milho debulhado, coisa pouco comum; o serviço era feito a cada dia, tarefinha leve guardada pra depois da janta. Nunca as porteiras estiveram tão boas: as mais velhas foram trocadas, as outras todas consertadas e feita manutenção. As cercas com arame repregado e tensionado, moirões novos em vários lugares.
Dona Glória juntava balaios e mais balaios de fiado de várias cores, resultado de horas sem conta limpando e descaroçando algodão. O trabalho de fazer as pastas – as cardas, ásperas, passando uma na outra, o algodão tomando forma. Aí vinha a roca, sonolenta, o fuso girando, o pé no pedal de madeira, as mãos atentas esticando o fio, dando a espessura certa, testando a resistência. Depois, na dobadoura, os fios virando meada. Em seguida a tintura, o tear, a tecedeira.
Já quase chegando à porteira, Rosa pensou: “Com esse tanto de fiado, mais a lã que põe junto, é capaz de ter um dilúvio de colcha um dia desses.”
Enquanto João bebia o café, Rosa aproveitou para dar um toque, jeitoso:
– Tá esfriando, né pai?
– Tá no tempo, minha filha...
Rosa, olhando o poente avermelhado, emendou:
– Parece que vai gear esta noite.
– Parece – respondeu seco, o pai.
– Quem sabe o senhor não voltava pra casa. Com esse frio... É até perigoso dormir no paiol.
– Palavra de homem não volta atrás, minha filha – cortou ele, decidido.
Rosa voltou sem esperança.
De noite geou forte. João Rufino calçou meia de lã e cobriu a cabeça com a Capa Ideal. O vento assobiava. Achou a cama dura.
Na cama larga, dona Glória custou a esquentar. Quase chamou Rosa para dormir com ela. Depois, achou que não podia dar o braço a torcer.
De manhã cedo, quando foi levar café no barracão, Rosa comentou sobre a noite mal dormida com a mãe, atacada de bronquite.
– Bronquite? – Perguntou o velho.
– Diz ela – respondeu a filha, sem muita convicção.
Do barracão, João Rufino deu uma passada pela cozinha, coisa que não fazia há quase dois meses. Apoiou um pé no rabo do fogão, botou o café para esquentar.
Dona Glória lavava arroz na pia perto do fogão. Deu uma tossida e olhou de lado. João Rufino tinha acabado de voltar o rosto para o lado dela. Ela virou para a pia, ele ficou alisando o gato enroscado no fogão. A mulher tossiu de novo, agora mais forte. O marido falou:
– Bronquite, com esse frio, agrava. Precisa agasalhar mais.
– Tem perigo não.
João Rufino continuou dormindo no paiol, mesmo com o frio. Mas vinha tomar café de manhã cedo, dentro da casa. Dona Glória tinha mandado Rosa falar que, com aquele tempo, esfriava só de levar no barracão.
Três dias depois, quase na hora do almoço, chegou um cavaleiro. Era Teodoro, o Juiz de Paz da cidade. Entra ano, sai ano, sempre reeleito. Muito estimado, o povo apreciava principalmente seu jeito decidido de resolver as questões.
Foi chegando e avisando que precisava falar com os dois. Logo chamaram para almoçar. João Rufino acabou sentado, meio constrangido, ao lado da mulher. Enquanto comia foi direto ao assunto: – “Olha, seu João e dona Glória. Não vou fazer rodeio. Soube do acontecido e achei que já passava da hora da gente ter uma conversa.”
Os velhos olhavam um para o outro, muito sem jeito. Ficaram calados. Quem falou foi Rosa:
– Pois é, seu Teodoro, a gente já cansou de pedir mas não adianta... quem sabe o senhor não põe um paradeiro nesta situação?”
– “Eu vim para isto mesmo! É um absurdo! Então criam uma família que serve de exemplo pra todo mundo, quando chega a hora de descansar em paz, começa esse tipo de coisa? Deixa de ser sistemático, seu João, e volta hoje mesmo pra dentro de casa! Em tempo de pegar uma pneumonia naquele paiol gelado. Como se já não bastasse a bronquite de dona Glória...
Virando-se para a dona da casa, continuou o sermão:
– “E a senhora, entenda: a volta de seu marido não é nenhuma fraqueza. A partir de hoje ele fica dispensado da palavra que deu. Faça o favor de não ficar esquentando a ideia dele depois que eu for embora.
Comeu mais umas duas garfadas, olhou para os dois, ainda calados, e concluiu:
– Preciso viajar logo depois do almoço e quero ter certeza da solução definitiva. Vamos acabar imediatamente com essa bobagem, isso já durou demais da conta.
Os dois nada tinham dito. Entreolharam-se. A resposta, como nascida de um secreto entendimento, veio de uma vez só:
– Palavra do senhor para nós é lei!
Domingo, na missa, levaram um frango para o Juiz de Paz...
Texto adaptado do livro “Casos de Minas”, de Olavo Romano.
Págs. 45 a 51.
Edição: 1982
Livro - Casos de Minas
A memória de Minas Gerais recuperada em histórias e "causos" populares. Textos fluentes e com humor. O autor vai no fundo de sua memória e de lá resgata certas coisas que ele gostaria que não morressem: um som particular, um cheiro impregnado, bichos, gentes, situações. Ele não cai na arapuca das descrições, narra apenas. O estilo é limpo, sem maquiagem, e encaixa perfeitamente com as histórias. A sabedoria, a malandragem, a essência do homem de interior – está tudo aqui, inteiro e intacto. E sua linguagem é respeitada, sem deformações gráficas.
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