sábado, 14 de dezembro de 2019

Revolta de Vila Rica


Julgamento de Filipe dos Santos
Autor: Antônio Parreiras (1923)

A rebelião de Vila Rica
(Conhecida como Revolta de Filipe dos Santos)
Autora: Angela Xavier

Para ter maior controle sobre as riquezas de Vila Rica, o governador resolveu mudar o centro da povoação da Serra do Ouro Preto para o bairro do Pilar. Com isso pretendia tirar a força dos chefes locais, que haviam se tornado muito poderosos após a Guerra dos Emboabas.
Por ser toda furada por minas com caminhos subterrâneos que só os moradores conheciam, a Serra do Ouro Preto se tornou uma região de difícil controle pelas tropas portuguesas.
A arrecadação do quinto do ouro sempre havia sido um problema. Havia o desvio feito através do contrabando ou da corrupção. Os moradores costumavam esconder o ouro em pó ou pequenas pepitas em variados locais. Emparedavam nas construções de pau-a-pique, debaixo do assoalho, dentro de imagens sacras, enterravam e tudo o que mais se pudesse imaginar. Além disso, mandavam fazer joias com o ouro descoberto e alegavam ser antigos patrimônios de família, evitando assim o pagamento da quinta parte devida à Coroa de Portugal. Difícil e desgastante controle, que afligia as autoridades coloniais.
Os conflitos eram constantes entre a população e as autoridades. A Coroa Portuguesa já havia tentado várias formas de cobrança: o quinto – 20% do ouro extraído – ou por capitação, que era uma taxa fixa cobrada por número de mineradores ou seus escravos. Tentou-se ainda cobrar trinta arrobas de ouro como quantia pré-estabelecida a ser paga anualmente pela capitania de Minas Gerais. O que faltasse seria cobrado em forma de Derrama, confiscando o que tivesse valor de qualquer habitante da capitania, começando pelos proprietários de lavras de mineração. Por mais que os portugueses criassem e adaptassem formas de cobranças, ficava claro que muito era sonegado e contrabandeado. Questão de difícil solução.
O excesso de rigor na cobrança dos impostos incitava a revolta entre os mineradores. Até imagens sacras particulares e de procissões eram usadas para esconder e transportar ouro. A situação era tão grave que a Coroa resolveu banir frades das regiões mineradoras e proibir a instalação de novas ordens religiosas. Posteriormente expulsou também os ourives, proibindo nas Gerais a arte de moldar o ouro e as joias. Estas medidas melhoraram o controle sobre a exploração dos metais preciosos, mas ainda longe do ideal. Os comerciantes que traziam mercadorias para os mineradores recebiam ouro em pó e pepitas como pagamento, portanto, sem impostos.
Em 1719, uma Carta Régia criou duas companhias de Dragões, com militares de cavalaria regidos por leis portuguesas, que deveriam proteger o governador, manter a ordem nas mais ricas regiões de mineração e escoltar os comboios do governo que levavam ouro e diamantes para o Rio de Janeiro, para enriquecer a Coroa Portuguesa.
Esse fato afetou a ordem social então estabelecida. Os poderosos da Serra de Ouro Preto tinham seus ordenanças armados desde a Guerra dos Emboabas, mantendo pequenas milícias particulares, além de muitos escravos a seu serviço, que serviam como força de intimidação. Junto com a instituição dos Dragões, foi decretado o desarmamento da população e a ilegalidade das milícias, abalando o poder dos chefes locais, entre eles Paschoal da Silva Guimarães, grande figura local com papel de destaque na Guerra dos Emboabas ao lado de Manuel Nunes Viana. Paschoal recebeu a patente de mestre de campo durante este conflito. Quando os franceses invadiram o Rio de Janeiro para criar a França Antartica, o governador Antônio de Albuquerque saiu das Minas Gerais com expedição para ajudar na expulsão dos invasores, deixando Paschoal em seu lugar para governar interinamente, que na ocasião cedeu trinta de seus escravos, armados, para serem incorporados às forças governamentais. Gente acostumada ao poder não abre mão dele facilmente, e os ricos mineradores e comerciantes engoliram com rancor o aumento da autoridade portuguesa, atentos a uma possibilidade de mudança.
Apesar de melhorar o controle da sociedade mineradora, faltava à Coroa um sistema eficiente para arrecadar as riquezas extraídas das Minas Gerais. A solução planejada foi a criação de quatro Casas de Fundição: em Vila Rica, Sabará, São João del Rei e Serro Frio.
As autoridades portuguesas acreditavam que, vivendo os povos sossegados sob a estreita vigilância, a mineração e os lucros da Coroa aumentariam. Nada era feito para a melhoria da vida da grande massa de escravos, negros e índios livres, mestiços e brancos pobres que aumentava continuamente, constituindo uma fonte de tensão e perigo.
O governador da então capitania de São Paulo e Minas do Ouro, Conde de Assumar, que nutria grande animosidade pelo povo das Minas, assim escreveu sobre eles:
“Os dias nunca amanhecem serenos; o ar é um nublado perpétuo; tudo é frio menos o vício, que está ardendo sempre [...] a terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; desfilam liberdades os ares; vomitam insolências as nuvens; influem desordens os astros; o clima é tumba da paz e berço da rebelião; a natureza anda inquieta consigo e, amotinada, lá dentro, é como no inferno”.
A mestiçagem era considerada a principal responsável pelos defeitos da população. Havia um grande desprezo por tudo que vinha dos africanos e índios, considerados incapazes de serem “civilizados” e de se tornarem cidadãos honrados.
A implantação das Casas de Fundição parecia ser a solução ideal para trazer ordem às Gerais. A população deveria levar a estes locais todo o ouro encontrado para, depois de tirada a quinta parte devida ao rei, ser fundido em barras com o selo oficial da Coroa, tornando-o legalizado para circular livremente. Ouro em pó e pepitas era considerado contrabando, sujeitos à prisão e confisco do material.
Os mineradores alegavam que parte do ouro era usurpado na pesagem da fundição e que era difícil e arriscado caminhar as distâncias até as Casas de Fundição. Além disso, a administração do Conde de Assumar era corrupta, permitindo explorações e abusos por parte dos cobradores de impostos, num clima de subornos e injustiças.
Outro fator que agravava ainda mais a situação era o aumento da importância dos paulistas após a Guerra dos Emboabas. Como a capital da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro era em São Paulo, os paulistas ganhavam os cargos mais altos da administração das regiões mineradoras, que gerava progressiva hostilidade entre os mineradores e os administradores. Os paulistas se tornaram os denunciantes dos revolucionários armados. Havia muitos chefes locais com poder respaldado pelo povo.
Vinte cinco dias antes de entrar em vigor a nova lei das Casas de Fundição, o povo de Vila Rica iniciou uma revolta, liderado por Paschoal da Silva Guimarães, Felipe dos Santos e outros. Já era noite quando uma multidão, armada e mascarada, desceu o Morro do Ouro Podre disposta a tudo, trazendo tochas e gritando: – Viva o povo ou morra!
Chegando ao Morro de Santa Quitéria, hoje Praça Tiradentes, os revoltosos se dirigiram para a casa do ouvidor Martinho Vieira, odiado pelo povo. Foi uma estratégia para conseguir a simpatia da população para o movimento. A ação foi bem organizada e contava com a participação de pessoas de posses, frades, doutores e figuras de destaque social em Vila Rica.
O ouvidor fugiu, deixando sua esposa e casa à mercê dos revoltosos. A casa, eles depredaram. Com a mulher não se sabe o que aconteceu. Depois deste ato, estabeleceram o comando revolucionário no alto do Morro de Santa Quitéria, onde acenderam fogueiras e elaboraram uma lista de reivindicações que levariam ao governador, em Mariana. Prepararam a marcha até a vila vizinha, onde se hospedava o Conde de Assumar quando estava nas Gerais.
A caminhada se fez à noite, em número aproximado de duas mil pessoas, decididas a conseguir um acordo ou morrer tentando. A guarda do governador, em Mariana, não foi suficiente para conter os revoltosos e, após breve combate, bateu em retirada. Foi assustador para o conde ver aquela multidão armada, com tochas e máscaras, cercando sua casa. Uma comissão apresentou a ele a lista com as exigências.
O governador, pego de surpresa, estava apavorado com a dimensão do movimento. Concordou com tudo para ganhar tempo, já pensando em não cumprir suas promessas. Os revoltosos acreditaram em sua palavra e retornaram para Vila Rica, dispersando-se em seguida, sentindo-se satisfeitos por conseguirem o que desejavam. Podiam ter aprisionado o conde e mandado-o para o Rio de Janeiro, elegendo um substituto para seu lugar, como fizeram nas Guerra dos Emboabas. Mas agora não tinham um líder com a experiência de Manuel Nunes Viana. Acreditaram no governador. Numa guerra não se pode dar passo em falso e ser generoso com o adversário, pois o preço a ser pago pode ser alto.
Foi o que aconteceu. O conde, refeito do susto, reuniu suas tropas, reforçando-as com escravos e mamelucos armados, e invadiu Vila Rica, rumando diretamente para as casas dos líderes da rebelião e prendendo-os. Felipe dos Santos conseguiu fugir e foi para o povoado de Cachoeira do Campo organizar uma reação popular, mas ali foi preso enquanto falava ao povo. Levado à Vila Rica, foi sumariamente julgado e condenado. Alguns dizem que sofreu a morte prevista aos altos traidores da Coroa Portuguesa: enforcamento seguido de esquartejamento dos membros e cabeça para serem espalhados pela povoação, para servir de exemplo aos que desafiavam a autoridade portuguesa. Outros afirmam que, por ter sido Felipe dos Santos o orador mais exaltado em Vila Rica, no início da revolta, e inflamado os ânimos dos manifestantes em Mariana, foi alvo de morte mais dolorosa e cruel, seguindo o modelo medieval: amarraram cada braço e perna a um cavalo diferente, num total de quatro, e depois açoitaram os animais até que arrancassem os membros do condenado, ainda vivo; depois amarraram noutro cavalo uma corda no pescoço e arrastaram cabeça e o tronco pelas ruas de Vila Rica, com destaque no Morro do Ouro Podre, local onde Felipe dos Santos vivia.  
Presos os ricos e influentes líderes revoltosos de Vila Rica, estes foram levados para a vila de Ribeirão do Carmo – atual Mariana – onde a guarda do governador era mais numerosa. Boatos surgiram de que mascarados e escravos armados pretendiam atacar Ribeirão do Carmo para soltar os prisioneiros. O alferes Manuel de Barros foi encarregado de acabar com o motim. Para minar o moral dos revoltosos de Vila Rica, o governador ordenou atear fogo a todo o arraial do Ouro Podre, onde ficavam as casas de Paschoal da Silva Guimarães, Felipe dos Santos e a maioria dos líderes rebelados.
Em uma noite o fogo destruiu o que levou vinte anos para ser construído. Toda a gente que ali morava viu tudo virar cinzas e escombros. Foi um incêndio infernal! O alferes Manuel de Barros, na pressa de espalhar o fogo, quase morreu sufocado pela fumaça no meio do labirinto de chamas que ele e seus comandados criaram. Sobraram apenas as pedras escurecidas pelo fogo e fumaça das construções mais imponentes. O antigo e poderoso Arraial do Ouro Podre estava destruído. Foi abandonado, associado à humilhação e tristeza, e até hoje assim continua, passando a ser chamado de Morro da Queimada.
O governador mudou-se para Vila Rica, preocupado com a intensidade dos acontecimentos e a grave possibilidade da perda de controle de uma região tão rica. O povo lhe era hostil e, desejando ganhar simpatia, o governador resolveu perdoar os presos da revolta de Vila Rica, com o respaldo do rei de Portugal. Para evitar novo levante, baixou decreto permitindo que a população poderia atirar para matar em qualquer mascarado que fosse encontrado no Morro do Paschoal ou em Vila Rica. Nunca ninguém atirou num mascarado, numa demonstração de apoio dos revoltosos.
O Conde de Assumar, na condição de governador da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, deveria se limitar a cumprir as ordens vindas do rei de Portugal. Ele não tinha autoridade para condenar ninguém à morte, com fez com Felipe dos Santos. O conde descreveu a situação de forma exagerada, dando a Felipe dos Santos uma autoridade maior do que ele tinha na verdade. Precisava se justificar perante o rei pelo que havia feito. Dizia que as minas mais pareciam “cavernas de feras que domicílios de homens”.
Mas, diante da gravidade dos fatos e do repúdio popular, o conde foi afastado do cargo de governador. Para se ter maior controle da situação nas ricas regiões de mineração, separou-se a capitania de Minas da de São Paulo. Agora haveria um governador cuidando somente dos mineiros, separando definitivamente os paulistas dos emboabas. O primeiro governador da Capitania de Minas Gerais foi D. Lourenço de Almeida, que tomou posse festiva em Ouro Preto, elevada a capital da nova capitania, em 1721, na matriz de Nossa Senhora do Pilar.
As Casas de Fundição só foram implantadas cinco anos depois, quando os ânimos já haviam se acalmado, e se anunciavam novos tempos de riqueza e esplendor.
O Morro do Paschoal é hoje o Morro da Queimada, um conjunto de ruínas de pedras, resto do que foi o grande e rico arraial do Paschoal. Sua casa, que era toda de pedra e ficava entre as capelas de Santana e a de a de São João, foi reduzida a ruínas. Elas existiram até mais ou menos 1940, quando foram arrasadas por pessoas ambiciosas à procura de tesouros escondidos.

Fonte de referência:
Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais (Auguste de Saint-Hilaire)

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Texto adaptado do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier.
Págs. 98 a 105.
Edição do Autor; Ouro Preto (MG); 2009 (2ª edição).

Obs.: Esta postagem foi realizada mediante prévia autorização da autora.

Para mais "causos" e contos de Angela Xavier, acesse o blog dela:
Compartilhando Histórias
http://www.angelaleitexavier.blogspot.com.br 

Livro : Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto

O livro reúne mais de 70 histórias, ambientadas do século XVIII até início do XX, coletadas junto a moradores ou em livros sobre a cidade. Olavo Romano, responsável pelo prefácio, afirma que "Ouro Preto era cheia de fantasmas, uma cidade mal iluminada, repleta de capelas e cemitérios, onde ninguém saia de casa depois das 21 horas. Trata-se de um livro que narra a História de Ouro Preto de uma forma agradável, à maneira dos contadores de histórias, e está entremeada de lendas e causos. Começa chamando a atenção do leitor para a necessidade de se preservar aquilo que faz parte da nossa memória e relata a descoberta do ouro, os conflitos que surgiram no início e as revoltas". 
A ênfase do livro é dada às histórias dentro da História, nas curiosidades que os livros de História não relatam, na sociedade que se formou ao redor das minas de ouro com suas crenças, seus valores e sua religiosidade. Relatos de grandes festas, de muitos casos assombrados e tesouros escondidos. A ilustração, com desenhos em bico de pena, é do artista plástico ouro-pretano José Efigênio Pinto Coelho.

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