sábado, 13 de julho de 2019

Reza imortal


A missa das almas

A veneranda senhora Virgínia Cabral despertou de seu profundo sono, com as conhecidas badaladas do sino da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, chamando os fiéis para o tradicional ofício religioso denominado Missa das Almas.
– Quê! Já 5 horas?
– E, sem consultar o relógio, ainda sonolenta e tremendo de frio, vestiu às pressas sua eterna saia preta de viúva, passou o xale em volta dos ombros e rumou para a igreja.
Na sua miopia de octogenária, não reparou nas feições dos que lá se encontravam, mas percebeu que o templo se achava repleto e o padre, no altar-mor, se movia de um para outro lado com uma leveza incomum.
O rosário ia correndo lentamente entre os seus velhos dedos descarnados, os seus olhos se perdiam num êxtase beatifico ante a imagem da Virgem, quando ouviu o relógio da torre bater horas.
Começou mentalmente a contá-las. – Cinco… seis… sete… Céus, não estaria enganada?! Oito... nove… Sentiu tremer-lhe todo o corpo. Dez... onze... e soaram as doze horas.
– Doze horas da noite e não do dia! Como por encanto, tudo desapareceu: padre, sacristão e fiéis, as luzes se apagaram e as portas se fecharam por si, todas juntas! – E na nave imensa, um silêncio e escuridão de túmulo!
Então, presa nas trevas naquele recinto solitário, e compreendendo, afinal, que participara de um ofício celebrado e assistido por mortos, tomada de indescritível pavor, rolou pesadamente ao solo, desacordada…
Quando, no dia seguinte, o sacristão abriu a igreja, para a costumeira Missa das Almas, D. Virgínia continuava ali, junto à porta principal, por onde certamente procurara fugir, lívida como um cadáver, ainda sem sentidos, sobre a frialdade dos ladrilhos…

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Texto adaptado do livro “Contam que...”, de Lincoln de Souza.
Págs. 35 a 38.

Livro : Contam que...
( Lincoln de Souza )
Toda cidade antiga tem suas lendas e São João del-Rei (MG) não foge desta regra. Estas lendas foram transmitas por tradição oral ao longo de gerações até serem reunidas num livro para registrá-las. Lincoln de Souza escreveu em 1920 o livro "Contam que..." com as 12 lendas mais famosas da cidade.
Editado e relançado diversas vezes, este livro foi uma das inspirações para a realização do projeto teatral turístico "Lendas São Joanenses", que encena alguns destes "causos" pelas ruas da cidade histórica.
São histórias de mistério e horror, mas nada muito diferente daquelas que costumávamos ouvir nas rodas entre amigos ou de pessoas mais velhas, quando fazíamos alguma travessura...

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Para ler o livro na íntegra, acesse:

Um comentário:

  1. O que há de lendas e causos gerados pelas crendices dos populares por esse nosso Brasil a fora dá uma biblioteca inteira. Boa história. Abraço do Universo.

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