sábado, 25 de maio de 2019

Revelação



O retrato

Padre Ernesto lia com fervor o seu breviário, quando uma senhora de certa idade, em cuja fisionomia se estampavam bondade e distinção, modestamente trajada, foi pedir-lhe que confessasse o filho, que se achava doente, guardando o leito.
Ele não a conhecia, como aliás não conhecia quase ninguém, visto ser de fora e ter chegado à cidade havia pouco.
Sem demora, largou o livro, pôs o chapéu na cabeça e saiu. Na rua, ela falou-lhe:
– O senhor não dirá que foi chamado expressamente para vê-lo. Proceda de maneira que a sua presença não o impressione. Ele está sofrendo do coração e qualquer abalo o pode vitimar. Residimos na rua de Santo Antônio, na quarta casa do lado esquerdo de quem vem do largo do Rosário. Não tem número, mas não haverá dificuldade em encontrá-la. Eu daqui sigo para Barro, em busca de um remédio e como, ao meu regresso, já não o encontrarei mais em casa, porque me demoro, desde já me despeço do senhor e muito de coração lhe agradeço a caridade. Boa noite.
– Boa noite. Vá com Deus!
– Amém.
Padre Ernesto ia pelo caminho pensando no que devia dizer, a fim de justificar sua presença e não alarmar o enfermo.
Após andar cerca de vinte minutos, estava em frente da casa indicada.
Bateu à porta. Veio atendê-lo uma jovem, toda de luto fechado. Depois de cumprimentá-la:
– Posso fazer uma visitinha ao querido doente?
– Pois não! Faça o favor de entrar. Entrou.
A beira do leito do rapaz:
– Estou hoje correndo o bairro, Sr… Como se chama?
– Alfredo, um seu criado.
– Agradecido. Mas, como ia dizendo, Sr. Alfredo, estou correndo o bairro, para travar conhecimento com as minhas ovelhas. Sou novo aqui. O senhor é católico, já sei…
– Católico, apostólico, romano.
– Muito bem. E tem-se confessado regularmente?
– Tenho, mas este mês…
– Compreendo: as coisas mundanas o têm absorvido mais que a religião…
E se, por acaso, morresse de repente, agora, amanhã?! Não sabemos nunca o dia da nossa partida… E, se tal acontecesse, não iria em pecado? Já pensou nisso, Sr. Alfredo?
– Francamente, não pensei… O senhor tem razão.
– Bem. Já que aqui estou, não quereria aproveitar a ocasião e resgatar essa falta?
Rapaz bastante religioso, não relutou: confessou-se. No dia seguinte, foi grande o espanto de Padre Ernesto quando soube que a ovelha da véspera amanhecera morta, com espanto também do próprio médico, visto que o estado do doente não parecia grave.
A família, que simpatizara com o confessor de Alfredo, chamou-o para a encomendação do corpo, em casa.
Padre Ernesto foi. Após o oficio fúnebre, os seus olhos deram com a ampliação fotográfica de um busto de mulher, na parede da sala de visitas, cercado de flores.
Reconhecendo nela a mãe de Alfredo, que tão providencialmente o fora chamar para confessá-lo na véspera de sua morte, falou a uma das moças da casa:
– É verdade, a senhora sua mãe… Imagino-lhe a angústia! Desejaria confortá-la no transe que atravessa. Posso vê-la?
– Ah! Impossível! Nossa pobre mãe… Padre Ernesto franziu a testa, sem compreender.
– Impossível? E fixou novamente o olhar no retrato da senhora que o procurara.
– Sim, infelizmente, disse a moça. E numa infinita tristeza, com os olhos inundados de lágrimas:
– Faz hoje, precisamente, três meses que ela morreu…

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Texto adaptado do livro “Contam que...”, de Lincoln de Souza.
Págs. 63 a 68.

Livro : Contam que...
( Lincoln de Souza )
Toda cidade antiga tem suas lendas e São João del-Rei (MG) não foge desta regra. Estas lendas foram transmitas por tradição oral ao longo de gerações até serem reunidas num livro para registrá-las. Lincoln de Souza escreveu em 1920 o livro "Contam que..." com as 12 lendas mais famosas da cidade.
Editado e relançado diversas vezes, este livro foi uma das inspirações para a realização do projeto teatral turístico "Lendas São Joanenses", que encena alguns destes "causos" pelas ruas da cidade histórica.
São histórias de mistério e horror, mas nada muito diferente daquelas que costumávamos ouvir nas rodas entre amigos ou de pessoas mais velhas, quando fazíamos alguma travessura...

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Para ler o livro na íntegra, acesse:

Um comentário:

  1. Se algum padre for te visitar sem ser convidado, não o deixe entrar. Vai que...

    Grande abraço do Universo

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