Autor: Mauro Fonseca
no
céu da minha boca.
... e se eu não morasse em mim
me sentiria solitário
sem meus olhos, meu fígado
atacado,
sem minhas mãos, meus rins gastos,
sem esse meu calo tão doído.
Se eu não morasse em mim
estaria com certeza desabrigado
sem minhas úlceras, minhas manias,
sem meus dentes caninos, minhas
unhas afiadas
e jamais viveria com o vizinho do
lado.
Se eu não morasse em mim
com meus pesadelos, minhas dúvidas
e minha voz tão pouca,
não saberia como são lindas
as estrelas que brilham
Adaptação do texto da página 65 do livro
Entre o
aborto e o parto: uma antologia
Mauro
Fonseca (Organização: Mauro Morais)
Funalfa, Juiz de Fora, 2015
Afirmativa
Autor: Mauro Fonseca
Estou
Entre a foto e o fato
Entre o aborto e o parto
Texto da página 71 do livro
Entre o aborto e o parto: uma antologia
Mauro Fonseca (Organização: Mauro Morais)
Funalfa, Juiz de Fora, 2015
Livro : Entre o aborto e o parto ( Contracapa )
Foto: Sylvio Bazote
Foto: Sylvio Bazote
Era 13 de janeiro de 1988 quando meu pai, aos 25 anos, deu um
beijo em minha mãe e partiu dizendo voltar. Disse que ia a uma reunião ou coisa
do tipo. Horas mais tarde uma corda e o desejo o fizeram encontrar a morte. Ele
se enforcou nas escadas da Igreja São Mateus, com um filho de cinco meses no
ventre da namorada. Eis o aborto. Quatro meses depois minha mãe entrou em uma
sala de cirurgia e nasci. Eis o parto.
Não houve benção do padre nem missa de sétimo dia. Ele sabia que
seria assim. Deixava para trás uma viagem ao norte do Brasil na qual contraiu
Doença de Chagas e um coração que, ironicamente, não parava de crescer. Deixava
também o que tenho agora: dois pequenos livros e mais de 300 poemas escritos em
folhas de rascunho, guardanapos, folhetos e outros espaços inusitados, depois
datilografados e organizados por um amigo.
O poema “Afirmativa”, publicado em 1984, resumiria uma relação que
se fez de distante silêncio, num entre lugar de dores, rompimentos e a
iminência constante do caos. Sobraram o vazio dos projetos e palavras.
Nos dois livretos que lançou, com tiragem de 150 exemplares cada,
em 1982 (Não sou náufrago na ilha de ninguém) e 1984 (Não há sinal de porto
algum), o poeta não se consagrou um reconhecido escritor. Faltou tempo e
amadurecimento. Pelos mesmos motivos não terminou nenhuma das faculdades que
começou.
Poucas fotografias, nenhuma roupa, nenhum vídeo para conhecer a
voz e os gestos. De tudo que é vestígio e do pouco que me contam, o que mais se
aproxima de uma presença são as palavras.
Dos escritos e fotos que guardo, distantes e envelhecidas, crio o
meu pai. Boêmio, era assíduo nos bares do bairro São Mateus. Conta-me minha avó
materna que disse-lhe que só casaria com minha mãe quando soubesse beber
socialmente e no dia seguinte ele foi para o bar vestido de terno e gravata. A
admiração pela narrativa cristã e a aflição pelas tradições e alianças da
igreja o fizeram, certa vez, vestir o manto de Nossa Senhora e sair pela
Procissão do Enterro, chocando as beatas e famílias tradicionais. Lembrado como
uma pessoa demasiadamente sensível, capaz de jogar, da janela do seu quarto,
agasalhos e cobertores aos mendigos que dormiam ao relento. Sentia-se à vontade
em saraus, debates e palestras, num ambiente marginal diferente do amplo apartamento
de classe média, com pai funcionário público e mãe dona de casa.
Toda morte é corte profundo. Meus avós, tios, minha mãe e amigos
de meu pai ainda sentem as dores do corte de sua vida. A corda, a qual em dado
momento fez retirar-lhe o ar de todos os dias seguintes, não foi o bastante
para calar as palavras hoje guardadas em um envelope amarelado, contendo folhas
igualmente desbotadas.
Nos poemas que herdei se percebe o homem sensível, o cidadão
revoltado com os dias de chumbo da ditadura, o religioso angustiado na relação
de amor e ódio com a igreja católica. Nas palavras construí minha história.
Revelo-me como filho porque na reunião desta herança está um laço com o qual
faço uma presença que nunca existiu. Duas vidas separadas pelos fatos, unidas pelos
textos, que nenhuma foto dá conta de narrar.
Mauro
Gabriel Morais da Fonseca
filho
Obrigado, Sylvio. O autor ilustra bem as ironias da vida! Ele bem diz que "toda morte é um corte profundo! Triste. Obrigado de novo.
ResponderExcluirNo caso do suicídio, um corte que deixa cicatrizes nas pessoas próximas...
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