sábado, 28 de julho de 2018

Fé ouro-pretana


Ilustração: José Efigênio Pinto Coelho
Pág. 80 do livro Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto

Santa Efigênia
Autora: Angela Xavier

Efigênia era uma princesa do reino da Núbia, na região da África Oriental, abaixo do Egito, e que pertencia ao Reino da Etiópia. Efigênia deveria se casar com alguém de sua importância social. Seu pai já havia escolhido o noivo ideal, mas ela não queria se casar. Ela havia se convertido ao catolicismo e queria ser freira, se manter virgem e adorar a Deus. Isso era inaceitável para seu pai, rei de um orgulhoso povo. Sua atitude causava um grande transtorno político, mas Efigênia estava irredutível em sua decisão.
Ela se tornou monja e refugiou-se num convento carmelita. Seu noivo, Hytarco, inconformado, ateou fogo ao mosteiro. O incêndio pouco afetou o local religioso, mas espalhou-se de modo rápido e destruidor rumo ao palácio do noivo incendiário. Efigênia foi santificada pela Igreja Católica e é representada carregando uma igreja.
Na antiga Vila Rica, no alto de uma montanha então pouco povoada onde hoje existe a Ladeira de Santa Efigênia, havia uma cruz alta de jacarandá que deu nome ao bairro de Alto da Cruz. Lá se sentavam escravos alforriados e costumavam conversar sobre suas pátrias distantes e as limitações de suas vidas.
Um dia, quando estavam sentados ao pé da cruz, os negros viram surgir à sua frente uma negra jovem e muito bonita, que os consolou com doces palavras. Disse que era uma virgem cristã de nome Efigênia. Novas aparições aconteceram naquele mesmo local e a jovem misteriosa conversava com os negros sobre amor, tolerância e paciência.
Um dia ela apareceu e pediu aos negros que fosse construída naquele local uma igreja, que deveria ter cinco altares simbolizando os cinco anos em que ela apareceu aos negros ao pé da cruz. Deveria ter sua frente voltada para o Rio Uamii (Rio das Velhas) e ter duas torres. A que dava para o nascer do sol teria um relógio e um grande sino. Na outra torre ficariam os sinos menores. A invocação seria Nossa Senhora do Rosário. Em sua homenagem, eles deveriam cultivar rosas em seus jardins e, à noite, os anjos os protegeriam. Por isso até hoje não se usam flores artificiais na igreja dedicada à Santa Efigência. Depois desse dia ela não voltou a aparecer.
Desde então os negros começaram a edificar o templo, com auxílio de escravos em seus momentos de descanso. As negras besuntavam os cabelos com azeite para que o ouro em pó grudasse neles e, ao lavá-los com água quente, apuravam aos poucos o ouro usado para auxiliar na construção do templo. Os cativos que queriam a liberdade faziam promessa de levar à santa coisas de valor. Ainda no início do século XX, por tradição, havia na Igreja de Santa Efigênia correntes de ouro e prata, jóias e ouro em pó, guardados num móvel de jacarandá que ficava na sacristia.
Santa Efigênia é a protetora dos negros, dos solteiros e dos soldados. Todos os anos os soldados da Polícia Militar vão à sua igreja, no dia 21 de setembro, prestar-lhe homenagem. Diz a lenda que a santa era devoção dos soldados do 10º Regimento do Exército, aquartelados onde hoje é o CEFET. Eles foram convocados para uma revolução em Itabiruna, em São Paulo. Na despedida na estação de trem, em meio à tristeza, os militares afirmavam que contavam com a proteção de Santa Efigênia. Depois da partida dos militares, a imagem da santa sumiu do altar. Padre e seus auxiliares procuraram aflitos a imagem. O cônego pressionou a zeladora, que afirmou nada saber. Tudo se resolveu quando os soldados do batalhão retornaram para Ouro Preto. A imagem da santa reapareceu em seu lugar, apesar do padre ter trocado as chaves da igreja e somente ele as conduzir naquele período. Todos viram os pés e a barra do manto da imagem sujos de barro e pegadas deixadas no caminho central da igreja. Afirmaram que a santa foi acompanhar os soldados do batalhão nos combates e retornou com eles para Ouro Preto.
Anos depois o quartel foi transferido para Belo Horizonte, com a mudança da capital do estado, e os militares erigiram próximo ao 1º Batalhão da Brigada Policial uma capela em devoção a Santa Efigênia, com donativos populares.
Contam ainda que, certa vez, quando um trem chegou a Vila Rica, desceu dele uma moça negra, muito bonita, carregando uma grande mala. Ela estava sozinha. Um rapaz, num gentil galanteio aproximou-se e se ofereceu para carregar a mala da moça até seu destino. Ela permitiu. Ao pegar a mala, o rapaz tomou um susto, pois não conseguiu levantá-la do chão, tamanho era seu peso.
– Mas o que há nessa mala para pesar tanto? – perguntou ele surpreso.
A moça sorriu, pegou a mala levantando-a sem esforço, e disse:
– Aqui estão os pecados desta cidade!
 E se afastou carregando a bagagem, deixando o jovem boquiaberto parado na estação ferroviária, sem saber o que dizer ou fazer.
Os antigos ouro-pretanos tinham uma máxima:
“Em Ouro Preto não entra peste e guerra, porque tem em suas extremidades duas invencíveis sentinelas.”
Referiam-se a Santa Efigênia no Alto da Cruz e, no outro lado da cidade, ao Senhor Bom Jesus das Cabeças.

Igreja de Santa Efigênia no alto da Ladeira de Santa Efigênia
( Ouro Preto - MG )

Igreja de Santa Efigênia
( Ouro Preto - MG )

Imagem de Santa Efigênia na Igreja de Santa Efigênia
( Ouro Preto - MG )

Texto adaptado do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier.
Págs. 81 a 85.
Edição do Autor; Ouro Preto (MG); 2009 (2ª edição).

Obs.: Esta postagem foi realizada mediante prévia autorização da autora.

Para mais "causos" e contos de Angela Xavier, acesse o blog dela:
Compartilhando Histórias
http://www.angelaleitexavier.blogspot.com.br 

Livro : Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto

O livro reúne mais de 70 histórias, ambientadas do século XVIII até início do XX, coletadas junto a moradores ou em livros sobre a cidade. Olavo Romano, responsável pelo prefácio, afirma que "Ouro Preto era cheia de fantasmas, uma cidade mal iluminada, repleta de capelas e cemitérios, onde ninguém saia de casa depois das 21 horas. Trata-se de um livro que narra a História de Ouro Preto de uma forma agradável, à maneira dos contadores de histórias, e está entremeada de lendas e causos. Começa chamando a atenção do leitor para a necessidade de se preservar aquilo que faz parte da nossa memória e relata a descoberta do ouro, os conflitos que surgiram no início e as revoltas". 
A ênfase do livro é dada às histórias dentro da História, nas curiosidades que os livros de História não relatam, na sociedade que se formou ao redor das minas de ouro com suas crenças, seus valores e sua religiosidade. Relatos de grandes festas, de muitos casos assombrados e tesouros escondidos. A ilustração, com desenhos em bico de pena, é do artista plástico ouro-pretano José Efigênio Pinto Coelho.

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