Queima do Judas
Autora: Angela Xavier
Depois de
celebrar a Ressurreição de Cristo vinha a queima do Judas Iscariotes. Festa que
despertava grande interesse da população. O povo delirava com as várias
representações do Judas, muitas vezes satirizando um político ou celebridade. O
boneco desfilava pelas ruas de Ouro Preto montado num burrinho, acompanhado por
um homem vestido caricaturalmente de mulher. Este personagem representava a
mulher do Judas e chorava o tempo todo. O cortejo era acompanhado por muitas
crianças e várias outras pessoas. Alguém gritava de tempos em tempos:
– O Judas
já morreu!
E logo
vinha a resposta das crianças:
– Foi
cachaça que bebeu!
O cortejo
seguia pelas principais ruas do centro da cidade e parava numa praça onde havia
uma forca montada. O Judas era então dependurado na forca e a execução
aguardava pela leitura do testamento, que em geral citava pessoas da cidade,
com o condenado deixando objetos para alguns e explicando o motivo de cada
coisa. Quando o Judas estava pendurado, antes de ser queimado, normalmente
recebia pauladas das crianças e de alguns jovens ou adultos mais exaltados.
Quando estava queimando, as crianças jogavam pedras nele enquanto bombinhas e
buscapés, colocadas dentro do Judas, estouravam com o fogo.
A leitura
do testamento era motivo de algazarra por parte da multidão, que se divertia
com a brincadeira. A seguir, transcrevo o
testamento de 1996, escrito por D. Maria da Conceição Santos:
“Todo ano estou aqui, com esta cara de gambá
Fui trair nosso senhor, agora vão me enforcar.
Corre gente, vem pra cá
Vai começar a partilha da herança que tenho para dar.
Pro seu Geraldo e pra dona Carmem, gente boa pra danar
Deixo um monte de flores pra sua sala enfeitar.
Para as irmãs Peixoto, Doca e Sinhá
Dou um par de sapatos para elas caminhar.
Para o Tisiu, sacristão tão querido
Deixo um terno bonito para ele andar todo metido.
Para a Alice Ribas, que é brava e faz a meninada rezar
Deixo um livro de música pra no catecismo ajudar.
Para o guarda da porta da igreja matriz, esse eu quero
deixar
Uma velha cadeira que é pra ele descansar.
Para o Tonico, que é muito parado
Deixo meu pó de mico para ele ficar mais agitado.
Para o Juarez deixo uns pratos e minha caneca
Além do meu chapéu pra tapar sua careca.
Para as mocinhas da cidade, como já é minha mania
Deixo camisinhas e uma velha bacia.”
Deixo camisinhas e uma velha bacia.”
O Sr.
Aurélio, apelidado Macaco Aranha, era um homem que fazia os bonecos de Judas na
década de 50. Uma vez ele pôs dentro do Judas, além das bombinhas, uma casa de
marimbondos. Quando o Judas explodiu, os marimbondos saíram furiosos picando
todo mundo. Foi um “Deus nos acuda”, e o Sr. Aurélio foi até preso!
Outra vez
que aconteceu muita confusão na queima do Judas foi quando Alcides Feijoada fez
o testamento. Ele era repentista, mas analfabeto. Cantava suas músicas puxando
pela memória. Pediu então ao jovem Biduca para escrever para ele. O dono do
Judas pediu que ele ofendesse sua sogra. Foi feito então um grande cartaz onde
se lia “Que morra minha insuportável sogra!” e colocado no local onde ficou uma
Judas, em trajes femininos, que aguardou junto ao cartaz o tradicional Judas
chegar de seu cortejo. Todos os presentes sabiam qual era a sogra citada.
Quando os
dois Judas estavam queimando, quem encomendou o Judas juntou-se à molecada que
batia com pedaços de pau nos bonecos e começou a ele também bater. Primeiro
bateu um pouco no Judas e depois começou a descer a paulada e xingar a Judas
feminina. Os filhos da tal senhora, nervosos ao ver sua mãe destratada daquela
forma em praça pública, foram tomar satisfação com o patrocinador enraivecido.
Parentes e amigos entraram na confusão e aconteceu uma briga feia, em que muita
gente ficou machucada por chutes, socos, pauladas e pedradas. Teve até quem
quebrou a perna.
♦
O Alcides
era um homem de raciocínio rápido e boa fala, por isso era convidado a fazer a
propaganda dos circos que chegavam à cidade e, volta e meia, anunciar pelas
ruas os produtos dos fabricantes locais.
Tinha
como atividades fixas ser engraxate durante o dia e vender amendoim torrado à
noite. Criou um creme que dizia ser bom para a pele e cabelos, que vendia para
as mulheres da Rua Xavier de Veiga. Como forma de propaganda, besuntava o creme
em seus longos cabelos cacheados, que estavam sempre muito brilhosos. As más
línguas diziam que seu cabelo era naturalmente oleoso, mas ele afirmava sempre
que era resultado do creme que criara. Quando alguma cliente reclamava que os
cabelos dela não tinham ficado tão brilhosos, ele afirmava ser questão de ter
mais paciência e persistência, pois alguns cabelos tinham “a raiz seca”.
Ele
escreveu um pequeno livro chamado “Devagar e sempre”. Ele ia ditando e o Biduca
escrevia. Biduca era seu admirador e companheiro de empreitadas. Neste livro,
Alcides narra um caso que chamou de “Procissão das Premessas”.
Ele conta
que nas procissões somente os ricos carregavam a imagem de Nosso Senhor dos
Passos. Os pobres, indignados com essa situação, resolveram agir e encheram com
pesadas pedras o andor onde se colocava a imagem do santo, que era retirada da igreja
para as procissões. Quando os ricos foram carregar o santo, não aguentaram
levá-lo por muito tempo, pois estava muito pesado, e foram aos poucos passando
o andor para os pobres, que propositalmente estavam próximos, já sabedores que
teriam que suportar uma grande carga. E foi assim que os mais humildes
conseguiram, pelo menos uma vez, ter a satisfação de carregar a imagem de Nosso
Senhor dos Passos durante uma procissão da Semana Santa, à custa de esperteza e
sacrifício.
Malhação do Judas
Batendo e queimando o Judas na Semana Santa
Texto adaptado do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier.
Págs. 279 a 284.
Edição do Autor; Ouro Preto (MG); 2009 (2ª edição).
Obs.: Esta postagem foi realizada mediante prévia autorização da autora.
Para mais "causos" e contos de Angela Xavier, acesse o blog dela:
Compartilhando Histórias
http://www.angelaleitexavier.blogspot.com.br
http://www.angelaleitexavier.blogspot.com.br
Livro : Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto
O livro reúne mais de 70 histórias, ambientadas do século XVIII até início do XX, coletadas junto a moradores ou em livros sobre a cidade. Olavo Romano, responsável pelo prefácio, afirma que "Ouro Preto era cheia de fantasmas, uma cidade mal iluminada, repleta de capelas e cemitérios, onde ninguém saia de casa depois das 21 horas. Trata-se de um livro que narra a História de Ouro Preto de uma forma agradável, à maneira dos contadores de histórias, e está entremeada de lendas e causos. Começa chamando a atenção do leitor para a necessidade de se preservar aquilo que faz parte da nossa memória e relata a descoberta do ouro, os conflitos que surgiram no início e as revoltas".
A ênfase do livro é dada às histórias dentro da História, nas curiosidades que os livros de História não relatam, na sociedade que se formou ao redor das minas de ouro com suas crenças, seus valores e sua religiosidade. Relatos de grandes festas, de muitos casos assombrados e tesouros escondidos. A ilustração, com desenhos em bico de pena, é do artista plástico ouro-pretano José Efigênio Pinto Coelho.
A ênfase do livro é dada às histórias dentro da História, nas curiosidades que os livros de História não relatam, na sociedade que se formou ao redor das minas de ouro com suas crenças, seus valores e sua religiosidade. Relatos de grandes festas, de muitos casos assombrados e tesouros escondidos. A ilustração, com desenhos em bico de pena, é do artista plástico ouro-pretano José Efigênio Pinto Coelho.
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