sábado, 16 de junho de 2018

Malhação do Judas


Ilustração: José Efigênio Pinto Coelho
Pág. 166 do livro Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto

Queima do Judas
Autora: Angela Xavier

Depois de celebrar a Ressurreição de Cristo vinha a queima do Judas Iscariotes. Festa que despertava grande interesse da população. O povo delirava com as várias representações do Judas, muitas vezes satirizando um político ou celebridade. O boneco desfilava pelas ruas de Ouro Preto montado num burrinho, acompanhado por um homem vestido caricaturalmente de mulher. Este personagem representava a mulher do Judas e chorava o tempo todo. O cortejo era acompanhado por muitas crianças e várias outras pessoas. Alguém gritava de tempos em tempos:
– O Judas já morreu!
E logo vinha a resposta das crianças:
– Foi cachaça que bebeu!
O cortejo seguia pelas principais ruas do centro da cidade e parava numa praça onde havia uma forca montada. O Judas era então dependurado na forca e a execução aguardava pela leitura do testamento, que em geral citava pessoas da cidade, com o condenado deixando objetos para alguns e explicando o motivo de cada coisa. Quando o Judas estava pendurado, antes de ser queimado, normalmente recebia pauladas das crianças e de alguns jovens ou adultos mais exaltados. Quando estava queimando, as crianças jogavam pedras nele enquanto bombinhas e buscapés, colocadas dentro do Judas, estouravam com o fogo.
A leitura do testamento era motivo de algazarra por parte da multidão, que se divertia com a brincadeira. A seguir, transcrevo o testamento de 1996, escrito por D. Maria da Conceição Santos:

“Todo ano estou aqui, com esta cara de gambá
Fui trair nosso senhor, agora vão me enforcar.

Corre gente, vem pra cá
Vai começar a partilha da herança que tenho para dar.

Pro seu Geraldo e pra dona Carmem, gente boa pra danar
Deixo um monte de flores pra sua sala enfeitar.

Para as irmãs Peixoto, Doca e Sinhá
Dou um par de sapatos para elas caminhar.

Para o Tisiu, sacristão tão querido
Deixo um terno bonito para ele andar todo metido.

Para a Alice Ribas, que é brava e faz a meninada rezar
Deixo um livro de música pra no catecismo ajudar.

Para o guarda da porta da igreja matriz, esse eu quero deixar
Uma velha cadeira que é pra ele descansar.

Para o Tonico, que é muito parado
Deixo meu pó de mico para ele ficar mais agitado.

Para o Juarez deixo uns pratos e minha caneca
Além do meu chapéu pra tapar sua careca.

Para as mocinhas da cidade, como já é minha mania
Deixo camisinhas e uma velha bacia.”

O Sr. Aurélio, apelidado Macaco Aranha, era um homem que fazia os bonecos de Judas na década de 50. Uma vez ele pôs dentro do Judas, além das bombinhas, uma casa de marimbondos. Quando o Judas explodiu, os marimbondos saíram furiosos picando todo mundo. Foi um “Deus nos acuda”, e o Sr. Aurélio foi até preso!
Outra vez que aconteceu muita confusão na queima do Judas foi quando Alcides Feijoada fez o testamento. Ele era repentista, mas analfabeto. Cantava suas músicas puxando pela memória. Pediu então ao jovem Biduca para escrever para ele. O dono do Judas pediu que ele ofendesse sua sogra. Foi feito então um grande cartaz onde se lia “Que morra minha insuportável sogra!” e colocado no local onde ficou uma Judas, em trajes femininos, que aguardou junto ao cartaz o tradicional Judas chegar de seu cortejo. Todos os presentes sabiam qual era a sogra citada.
Quando os dois Judas estavam queimando, quem encomendou o Judas juntou-se à molecada que batia com pedaços de pau nos bonecos e começou a ele também bater. Primeiro bateu um pouco no Judas e depois começou a descer a paulada e xingar a Judas feminina. Os filhos da tal senhora, nervosos ao ver sua mãe destratada daquela forma em praça pública, foram tomar satisfação com o patrocinador enraivecido. Parentes e amigos entraram na confusão e aconteceu uma briga feia, em que muita gente ficou machucada por chutes, socos, pauladas e pedradas. Teve até quem quebrou a perna.
Alcides Feijoada, autor do testamento, refugiou-se durante a briga no Beco da Mãe Chica, e ali ficou na casa de um amigo por uma semana, esperando os ânimos se acalmarem.
O Alcides era um homem de raciocínio rápido e boa fala, por isso era convidado a fazer a propaganda dos circos que chegavam à cidade e, volta e meia, anunciar pelas ruas os produtos dos fabricantes locais.
Tinha como atividades fixas ser engraxate durante o dia e vender amendoim torrado à noite. Criou um creme que dizia ser bom para a pele e cabelos, que vendia para as mulheres da Rua Xavier de Veiga. Como forma de propaganda, besuntava o creme em seus longos cabelos cacheados, que estavam sempre muito brilhosos. As más línguas diziam que seu cabelo era naturalmente oleoso, mas ele afirmava sempre que era resultado do creme que criara. Quando alguma cliente reclamava que os cabelos dela não tinham ficado tão brilhosos, ele afirmava ser questão de ter mais paciência e persistência, pois alguns cabelos tinham “a raiz seca”.
Ele escreveu um pequeno livro chamado “Devagar e sempre”. Ele ia ditando e o Biduca escrevia. Biduca era seu admirador e companheiro de empreitadas. Neste livro, Alcides narra um caso que chamou de “Procissão das Premessas”.
Ele conta que nas procissões somente os ricos carregavam a imagem de Nosso Senhor dos Passos. Os pobres, indignados com essa situação, resolveram agir e encheram com pesadas pedras o andor onde se colocava a imagem do santo, que era retirada da igreja para as procissões. Quando os ricos foram carregar o santo, não aguentaram levá-lo por muito tempo, pois estava muito pesado, e foram aos poucos passando o andor para os pobres, que propositalmente estavam próximos, já sabedores que teriam que suportar uma grande carga. E foi assim que os mais humildes conseguiram, pelo menos uma vez, ter a satisfação de carregar a imagem de Nosso Senhor dos Passos durante uma procissão da Semana Santa, à custa de esperteza e sacrifício.
Ao término da procissão as pedras foram descobertas no andor, que passou desde então a ser conferido com rigor antes das novas solenidades.

Malhação do Judas
Batendo e queimando o Judas na Semana Santa
( Ouro Preto - MG )
Foto : Ronald Péret

Texto adaptado do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier.
Págs. 279 a 284.
Edição do Autor; Ouro Preto (MG); 2009 (2ª edição).

Obs.: Esta postagem foi realizada mediante prévia autorização da autora.

Para mais "causos" e contos de Angela Xavier, acesse o blog dela:
Compartilhando Histórias
http://www.angelaleitexavier.blogspot.com.br 

Livro : Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto

O livro reúne mais de 70 histórias, ambientadas do século XVIII até início do XX, coletadas junto a moradores ou em livros sobre a cidade. Olavo Romano, responsável pelo prefácio, afirma que "Ouro Preto era cheia de fantasmas, uma cidade mal iluminada, repleta de capelas e cemitérios, onde ninguém saia de casa depois das 21 horas. Trata-se de um livro que narra a História de Ouro Preto de uma forma agradável, à maneira dos contadores de histórias, e está entremeada de lendas e causos. Começa chamando a atenção do leitor para a necessidade de se preservar aquilo que faz parte da nossa memória e relata a descoberta do ouro, os conflitos que surgiram no início e as revoltas". 
A ênfase do livro é dada às histórias dentro da História, nas curiosidades que os livros de História não relatam, na sociedade que se formou ao redor das minas de ouro com suas crenças, seus valores e sua religiosidade. Relatos de grandes festas, de muitos casos assombrados e tesouros escondidos. A ilustração, com desenhos em bico de pena, é do artista plástico ouro-pretano José Efigênio Pinto Coelho.

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