sábado, 13 de janeiro de 2018

Rancor santo

Ilustração: José Efigênio Pinto Coelho
Pág. 53 do livro Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto

Aleijadinho e São Jorge
Autora: Angela Xavier

Certo dia o governador das Minas Gerais convocou o grande mestre Aleijadinho para encomendar-lhe uma estátua e combinar detalhes: tamanho, características, preço e prazo de entrega.
Aleijadinho se dirigiu ao Palácio acompanhado de seu escravo e foi recebido pelo chefe de gabinete do governador, Antônio Romão. Este tinha um ar irônico e olhava fixamente para Aleijadinho, que não estava com uma aparência agradável devido às deformações físicas causadas pela doença que lhe acometia. Pessoa assim não gosta de ser reparada de forma tão afrontosa. Além disso, o tratamento dispensado ao artista foi frio. Tudo isso deixou Aleijadinho magoado, com um brilho nos olhos.
Quando foi recebido pelo governador, eles fizeram os acertos sobre a estátua de São Jorge, articulada e em tamanho um pouco maior que o natural. Passando pelo chefe de gabinete, Aleijadinho olhou-o fixamente no rosto, registrando cada detalhe.
Nos próximos dias, trabalhou sem cessar em sua oficina para entregar a encomenda no prazo combinado, que era curto. A escultura articulada seria montada num cavalo na procissão de Corpus Christi. Moldou o rosto da imagem com capricho, atento aos detalhes, até dar por encerrado o trabalho.
Lá foram novamente Aleijadinho e seu escravo Maurício ver o governador para entregar a encomenda. A imagem estava coberta por um pano e o governador, acompanhado de seu chefe de gabinete e outros funcionários do palácio, ordenou que a descobrissem. Nesse momento, exclamações de surpresa saíram espontaneamente de diversas bocas, seguidas de risos e comentários contidos. A escultura reproduzia, em detalhes e de forma caricatural, o rosto de Antônio Romão, chefe de gabinete.
Essa foi a resposta do artista aos olhares insultosos que recebeu do arrogante funcionário, que não teve mais sossego pois, quando saía às ruas, era objeto de chacota dos que haviam visto a estátua. Fizeram até um verso que dizia:
"Aquele que ali vai, com cara de santarrão,
não é santo coisa nenhuma, é Antônio Romão!"
Mas a história não termina aqui.
A procissão de Corpus Christi era uma festa bastante concorrida. As ruas eram enfeitadas com tapetes feitos de pó de serra, pó de café, casca de arroz e flores, formando belos desenhos.  As janelas das casas eram enfeitadas com toalhas coloridas e jarras de flores. As matracas iam à frente abrindo caminho e organizando o cortejo. Na frente ia o pároco com o Santíssimo debaixo de um pálio, precedido por coroinhas com turíbulos de onde o incenso perfumava toda a rua. A seguir cada irmandade se apresentava com seu estandarte e sua opa, depois vinham figuras bíblicas, anjos, bandas de música. Os fiéis iam na calçada segurando velas acesas e terços, entoando canções. Uma festa de encher os olhos, os ouvidos e o olfato.
A nova estátua de São Jorge ia sair em público pela primeira vez. Ajeitada sobre um cavalo selado, conduzido por um escravo em traje de cetim, saiu São Jorge segurando uma lança, colocada em sua mão. Era a grande atração do cortejo naquele ano.
Descendo uma das muitas ladeiras de Ouro Preto, a procissão fez uma parada. O cavalo que conduzia São Jorge incomodou-se com algo e deu um pinote com as patas traseiras, lançando com força a imagem para frente. Numa tragédia, a lança carregada por São Jorge atravessou o corpo do escravo que conduzia o cavalo, matando-o. As pessoas não acreditavam no que viam. Houve choro dos beatos, as crianças vestidas de anjo eram tiradas de perto da cena pelos adultos. Os cléricos não sabiam o que fazer.
Uma pessoa havia sido assassinada durante um evento religioso e público. Não se poderia simplesmente voltar para casa e deixar a situação sem nenhuma providência. A imagem de São Jorge foi levada para a prisão e lá ficou por muito tempo, presa atrás das grades, considerada culpada pela morte. Tem documentação oficial que comprova o fato. Atualmente se encontra no Museu da Inconfidência.
Alguns comentaram, de forma discreta, que é isso que acontece quando um guerreiro é criado baseado no sentimento do rancor, mesmo que seja um santo.

Escultura de São Jorge feita por Aleijadinho 
Museu da Inconfidência

Texto adaptado do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier.
Págs. 54 a 56.
Edição do Autor; Ouro Preto (MG); 2009 (2ª edição).

Obs.: Esta postagem foi realizada mediante prévia autorização da autora.

Para mais "causos" e contos de Angela Xavier, acesse o blog dela:
Compartilhando Histórias
http://www.angelaleitexavier.blogspot.com.br 

Livro : Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto

O livro reúne mais de 70 histórias, ambientadas do século XVIII até início do XX, coletadas junto a moradores ou em livros sobre a cidade. Olavo Romano, responsável pelo prefácio, afirma que "Ouro Preto era cheia de fantasmas, uma cidade mal iluminada, repleta de capelas e cemitérios, onde ninguém saia de casa depois das 21 horas. Trata-se de um livro que narra a História de Ouro Preto de uma forma agradável, à maneira dos contadores de histórias, e está entremeada de lendas e causos. Começa chamando a atenção do leitor para a necessidade de se preservar aquilo que faz parte da nossa memória e relata a descoberta do ouro, os conflitos que surgiram no início e as revoltas". 
A ênfase do livro é dada às histórias dentro da História, nas curiosidades que os livros de História não relatam, na sociedade que se formou ao redor das minas de ouro com suas crenças, seus valores e sua religiosidade. Relatos de grandes festas, de muitos casos assombrados e tesouros escondidos. A ilustração, com desenhos em bico de pena, é do artista plástico ouro-pretano José Efigênio Pinto Coelho.

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