Foliões das almas na Semana Santa
Não se
sabe ao certo de onde surgiu o ritual de "Recomendação das Almas",
como era chamado, mas se sabe que ele era praticado em Portugal desde a Idade
Média. Isso porque o catolicismo medieval acreditava que o destino comum de
todas as almas era o Purgatório, de onde partiriam depois para o Paraíso ou
para o Inferno conforme suas ações e méritos. Daí a tradição de rezar e cantar
às almas como forma de pedir a salvação de parentes e amigos falecidos, além de
desconhecidos por caridade.
A Folia
das Almas (também conhecida como Encomendação das Almas) é uma tradição popular portuguesa, trazida ao Brasil pelos jesuítas no século XVI, e encenada
durante a Semana Santa. Os participantes desta crença rezam pelas almas penadas
do purgatório durante os dias da Semana Santa, visitando capelas e casas com os
cânticos da "Encomendação das Almas", encerrando a reza na Sexta-Feira
da Paixão, pedindo a Deus que abençoe e libere almas do purgatório para subir
aos céus.
Com o
objetivo de evangelização, esse ritual era bastante comum em regiões do
interior do Brasil. A partir da segunda metade do século XX, foi perdendo a
força devido ao êxodo rural provocado pela industrialização e consequente poder
de atração das cidades, e atualmente se mantém em poucos locais.
A
tradição da Folia das Almas, no Vale da Gurita – região rural do município de
Delfinópolis (MG) – é mantida há mais de 40 anos por um grupo folclórico local
(*). O ritual é realizado pelos moradores das comunidades do Itajuí e Itaniope,
situadas no vale. O grupo promove visitas às casas do
entorno da Serra da Canastra para realizar a "Cantoria pras Almas",
passando pelos vilarejos de São João Batista e Serrinha, ambos na área rural de
São Roque de Minas. O evento tem o apoio do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que administra a unidade de conservação situada na Serra da Canastra.
Desde
2012, a Folia das Almas inclui em sua programação uma caminhada ecológica, de
aproximadamente 3 Km, que leva ao Cemitério do Tatu.
A ideia foi sugerida pela chefia do Parque Nacional da Serra da Canastra e
incorporada pelos organizadores do evento. Para quem gosta de cultura popular e
recreação em ambientes naturais, visitar o parque na semana santa se tornou um
prazer em dose dupla.
Esta
peregrinação é uma homenagem a um triste episódio da história do Vale da
Gurita. Segundo a tradição, uma epidemia de gripe espanhola dizimou, no início
do século XX, grande parte da população local. Sem ter onde enterrar tanta
gente, os moradores improvisaram um cemitério no pé da serra. Ao longo dos anos,
sempre à noite, tatus-canastras apareciam e desenterravam os cadáveres. Daí o
nome do lugar.
O ponto
alto da Folia das Almas é entre a Sexta-Feira Santa e o Sábado de Aleluia. Na manhã
de sexta, o grupo sai de Delfinópolis até as margens do Rio Babilônia, no entorno
do Parque Nacional da Serra da Canastra. Dali começam a caminhada (Caminhada
Ecológica da Folia das Almas) até o Cemitério do Tatu, situado fora do parque.
Às 15
horas – horário em que Jesus faleceu – são realizadas orações e cantos junto ao
Cruzeiro das Almas, no interior do cemitério, depositando no mesmo, água do Rio
Babilônia e flores, representando o pedido do grupo à Nossa Senhora das Graças
pela libertação das almas do purgatório (ou "almas penadas").
Após a
visita ao cemitério, os devotos seguem para a Capela de Nossa Senhora das Graças,
padroeira do Vale do Itajuí, onde, entre rezas e conversas, aguardam a noite
para iniciar a peregrinação pelas casas da região, fazendo a Encomendação das
Almas.
Chegando
em cada casa, anunciados pelos sons de matraca, apito, chocalho, réu-réu,
cigarra e berra-boi (**), os devotos realizam a Cantoria das Almas, convidando
os moradores a rezarem. Quando o ritual começa, os donos das casas devem apagar
as luzes e rezar. Após a reza, os moradores acendem as luzes e recebem os peregrinos
com comidas e breves conversas, após as quais, o cortejo segue para outra
residência, recomeçando o ritual.
A
cantoria termina na residência de uma pessoa, eleita para ser o "festeiro"
daquele ano. Esta casa é enfeitada com imagens de santos e para ela são
convidados outros moradores da região. Nela é rezado o terço (Terço da
Libertação das Almas) pouco antes da meia-noite da Sexta-Feira da Paixão,
depois do qual, no início da madrugada do Sábado de Aleluia, é realizada a caça
ao tesouro de Judas (***).
A "Caça
ao tesouro de Judas Iscariotes" é realizada por crianças e adolescentes da
comunidade, consistindo na procura de um boneco espantalho escondido, que traz
consigo o "tesouro das almas". Ao encontrar o tesouro, os jovens
(fantasiados e mascarados, representando as almas penadas) distribuem entre os
convidados os presentes que estavam junto ao boneco e o conduzem até uma
fogueira para ser queimado.
Ouve-se,
então, uma gravação com a voz de Judas, em que ele compartilha seu sofrimento,
demonstrando compaixão pelas almas e seu desapego às coisas terrenas. Assim,
oferece seu sacrifício pela salvação das almas que foram perdoadas e agora
seguem para o Céu.
Após a
queima do Judas, o festeiro oferece um jantar aos peregrinos e moradores,
encerrando a celebração da Folia das Almas naquele ano.
Ë
(*) Para não deixar morrer a tradição
O grupo da comunidade do Itajuí realiza as
cerimônias há mais de 40 anos sem interrupções. A tradição da Folia das Almas,
porém, precisou se adaptar aos novos tempos para continuar a existir. Os cantos
e rezas, que aconteciam em todas as sextas-feiras da Quaresma, hoje ocorrem
somente na quarta, na quinta e na sexta da Semana Santa.
Com base no levantamento realizado pelo
Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Delfinópolis, a Folia das Almas de
Itajuí é uma manifestação folclórico-religiosa de grande importância, tanto
para a história da Igreja Católica no Brasil quanto para o fortalecimento da
identidade sócio-cultural das comunidades. Por isso, a entidade trabalha para
preservar a celebração.
A prefeitura de Delfinópolis disponibiliza
veículos do transporte escolar para que o grupo de foliões das almas possa
fazer seus deslocamentos durante a Semana Santa, possibilitando mais segurança
e conforto ao cortejo que antigamente era feito a cavalo.
Os foliões também trabalham para chamar mais
gente para compor o cortejo durante o feriado santo. É comum a folia começar
com 20 ou 30 pessoas na área urbana e que, no último dia, já atraia mais de 50. O grupo é
aberto a todos que queiram participar e conta com pessoas de todas as idades.
Ë
(**) Os instrumentos musicais da Folia das Almas
Os devotos realizam sua peregrinação levando
consigo diversos instrumentos musicais. A matraca é a protagonista. Produz um
som parecido ao canto de uma gralha – o barulhento pássaro parente
dos corvos – cada vez que o ferro encosta a madeira. Ela é tocada repetidas
vezes e anuncia a chegada do cortejo.
O apito é levado pelo capitão da folia. O
chocalho também está presente e é para lembrar o barulho das pedras que eram
jogadas nas casas das pessoas para avisar a chegada do cortejo. O réu-réu,
feito de bambu, gera uma sequência rápida de batidas quando o tocador gira a
roda dentada, que levanta e solta rapidamente uma lasca do instrumento. A
cigarra imita o barulho desse inseto, tão comum no campo. O berra-boi, feito a
partir de um cordão que se prende em uma tábua de um lado e por um cabo do
outro, produz um som forte que imita o barulho de uma ventania.
Ë
(***) O tesouro de Judas
Jesus foi traído e entregue aos romanos por
Judas, recebendo este 30 moedas de prata. Arrependido de seu ato, posteriormente
Judas entrega as moedas aos sacerdotes e depois se mata.
As crianças, fantasiadas e mascaradas, representam as
almas penadas, e saem à procura do tesouro de Judas – recheado com balas,
bombons, pequenos brinquedos e outras regalias – como forma de castigar Judas
por sua ambição, furtando seus bens materiais antes de sua morte.
Foliões das Almas em cortejo para o Cemitério do Tatu
Serra da Canastra (MG)
Serra da Canastra (MG)
Folia nas Almas na Capela de Nossa Senhora das Graças
Vale do Itajuí (MG)
Vale do Itajuí (MG)
"Cantoria pras Almas"
Cortejo noturno da Folia das Almas
Cortejo noturno da Folia das Almas
Folia das Almas - Delfinópolis (MG)
https://www.youtube.com/watch?v=zBO-FZ8OwKI
(12:12)
Reportagem mostra a dinâmica da devoção da Folia das Almas em Delfinópolis (MG): preparativos, motivações e depoimentos.
Folia das Almas tem canto e reza para os mortos na Serra da Canastra
(14:00)
O repórter Nélson Roberto Araújo apresenta uma bela matéria
– em prosa e verso – exibida pelo Globo Rural, em 02 de novembro de 2014.
“O canto das almas é um canto de finados. (...) Nós
brasileiros estamos perdendo muito este lado da cultura das peças e, sobretudo,
das celebrações. Na cidade não se tem mais este fator de convivência que
congrega. (...) O campo agrega!”
Antônio Grilo –
Historiador
"Encomendação das Almas"
Cemitério do Tatu
Cemitério do Tatu
Foliões das Almas no Cemitério do Tatu
Serra da Canastra (MG)
Serra da Canastra (MG)
Rezas e cânticos na Capela de Nossa Senhora das Graças
Itajuí (MG)
Itajuí (MG)
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
Folia das Almas é atração no Parque da Canastra na Semana Santa
http://www.icmbio.gov.br/portal/ultimas-noticias/20-geral/3791-folia-das-almas-e-atracao-no-parque-da-canastra
Sagarana
Preces para as almas
http://revistasagarana.com.br/religiosidade
Mineiros . Com
Encomendação das almas
http://mineiros.com/encomendacao-das-almas
Assim era praticado o ritual da Recomendação das Almas
(também chamado Encomendação das Almas, Cantoria pras Almas ou Folia das Almas),
praticado com o objetivo e rogar preces em favor das almas dos mortos,
visando seu progresso espiritual e alívio de penas.
Folia
é um termo para designar festejos religiosos diversos, conhecidos também como "festança", caracterizados por brincadeiras e agitação ou qualquer aglomerado
de pessoas que se juntam para algazarras celebrativas, principalmente quando
esse evento tem um fundo religioso.
De
origem popular, a folia é algo típico do catolicismo. A mais conhecida
é a Folia de Reis, uma espécie de procissão masculina onde se canta em louvor
ao Espírito Santo e pede a proteção contra doenças e pragas.
Fonte:
Livro: Encantamento da Sexta-Feira Santa: Manifestações do catolicismo no folclore brasileiro.
Autor: José Carlos Pereira
São Paulo: Editora Annablume, 2005 (p.155).
Livro: Encantamento da Sexta-Feira Santa: Manifestações do catolicismo no folclore brasileiro.
Autor: José Carlos Pereira
São Paulo: Editora Annablume, 2005 (p.155).
Mais um excelente trabalho e pesquisa.
ResponderExcluirAbraço do Universo
Grato pelo elogio, Universo.
ExcluirNossas tradições religiosas e folclóricas têm uma fascinante diversidade!
Excelente a iniciativa de preservar as tradições locais.O Brasil em sua diversidade é um manancial valioso
ResponderExcluirPrincipalmente por causa do êxodo rural,a preservação é de imenso valor para manter a identidade de origem dos que saíram mas que em geral retornam mesmo que seja em breves períodos de visita.As grandes cidades cujo cotidiano está repleto de violência e concorrências, campo privilegiado do narcotráfico, sequestraram a possibidade de relocalizaçáo cultural e identitátia do migrante.Promover sua volta às origens por meio de excursões, seria um excelente meio de resguardá-lo de cair na violência e nad drogas pela perda do pertencimento.