Estátua de Tiradentes
Parte superior do monumento no centro da Praça Tiradentes
( Ouro Preto - MG )
Foto : Sylvio Bazote
( 24 Jan 2014 )
O roubo da cabeça de Tiradentes
Autora: Angela Xavier
Todos conhecem a história da Inconfidência Mineira e seu
trágico final. Nosso relato se restringe ao destino da cabeça de Tiradentes.
Depois de morto por enforcamento, ele teve seu corpo
esquartejado e colocadas as partes nos locais por onde ele havia passado e
falado de suas ideias de liberdade. Era a resposta do governo. Que ninguém mais
ousasse se levantar contra a rainha de Portugal! A cabeça, troféu maior, foi
salgada, levada para Vila Rica e colocada em uma gaiola presa numa estaca. Era
o dia 12 de maio de 1792. No centro da Praça de Santa Quitéria, hoje Praça
Tiradentes, ela deveria ficar até que "o tempo a consuma".
Esse fato ocorreu com grande aparato. Tropas de cavalaria se
postaram enfileiradas, impondo a ordem e dando um caráter oficial ao evento. O
povo se amontoava a certa distância para ver o horrível espetáculo. Na Câmara
Municipal, os políticos proferiam discursos exaltando Sua Majestade e maldizendo
o "traidor" Tiradentes, que recebera um castigo merecido. Que isto servisse de
lição a outros subversivos que ousarem se voltar contra a querida rainha D.
Maria I!
E assim se passou. Amaldiçoado pelas autoridades, olhado com
temor e admiração pelo povo, Tiradentes cumpriu a sua sina. À tardinha todos
se recolheram às suas casas e a praça se esvaziou.
À noite ninguém costumava sair, pois a luz dos lampiões era
muito fraca e as pessoas tinham medo de bandidos ou até mesmo de
almas penadas. Tudo era silêncio na Praça de Santa Quitéria. Não havia viv’alma
por ali. Apenas uma neblina baixa passava lenta, tapando a pouca visão da
praça.
Pois nessa fria e escura madrugada a cabeça do Tiradentes
foi roubada e escondida em algum lugar onde ninguém jamais a encontrou. Livrou,
dessa forma, o alferes da desgraça de ter sua cabeça apodrecendo, em plena
praça pública.
Alguns dizem que a cabeça foi embalsamada e colocada numa
urna de pedra hermeticamente fechada, depois de ser preenchida totalmente com
ouro em pó e enterrada em local desconhecido.
Outros dizem que a cabeça foi roubada por um monge. Ele a
guardava numa caixa e retirava de vez em quando para meditar diante dela.
Meditação sobre a vida e a morte.
Uma terceira versão diz que Tiradentes tinha uma admiradora
que, aproveitando-se da ocasião, sumiu com a gaiola. Sua
escrava ficou distraindo o soldado que vigiava a praça, dando-lhe cachaça
para beber.
Fato é que a cabeça original nunca apareceu, mas uma réplica surgiu na
Praça Tiradentes, 200 anos depois. Foi
quando se homenageou, em 1992, o herói nacional e patrono da Polícia Militar
mineira, Tiradentes.
As autoridades planejaram uma festa à altura. Tropas de
Dragões saíram a cavalo do Rio de Janeiro pela Estrada Real e foram se
revezando pelo caminho. Homens e cavalos
eram trocados até chegarem a Ouro Preto, onde os festejos em praça pública
aconteceriam.
A escola de arte local havia providenciado réplicas em gesso
do corpo do Tiradentes e da sua cabeça. As partes, braços e pernas foram
colocados em pontos estratégicos de todo o centro da cidade. Eram tantas que
dariam para formar uns sete corpos. A intenção era impressionar. Pintaram com
tinta vermelha nos lugares dos cortes e a tinta fresca ainda pingava pelo chão, dando a impressão terrível de ser sangue.
A cabeça foi colocada dentro de uma gaiola sobre um poste fincado no
centro da Praça Tiradentes, bem à frente da estátua do mártir da independência.
A banda da Polícia Militar tocou acordes em homenagem ao grande herói nacional.
A praça estava cheia, flores foram colocadas aos pés da estátua do Tiradentes,
cantou-se o Hino Nacional e os discursos das autoridades exaltavam a grande
figura do alferes, exemplo de patriotismo. Terminada a festa pública, a praça
foi se esvaziando, a tarde foi caindo, tudo escureceu. Era noite fria e a praça, agora mais iluminada que há 200 anos antes, não tinha o mesmo
aspecto macabro.
Naquela noite, uma galeria da cidade havia feito a
vernissage de uma exposição sobre Bené da Flauta, extraordinária figura popular
que aqui viveu e atuou nos anos 70. Tal evento reuniu artistas e intelectuais e
várias pessoas da comunidade, ávidas de recordações dos áureos anos 70 em Ouro
Preto.
Lá pelas cinco horas da manhã, dois artistas plásticos da
cidade, Gelcio Fortes e José Efigênio Pinto Coelho, chegaram à praça, vindos da
exposição. Viram então a cena da praça escura, com a neblina fria se
movendo, iluminada pelas luzes dos monumentos públicos com a cabeça do
Tiradentes lá no alto do poste, dentro da gaiola.
– Essa cabeça não pode amanhecer aqui! Disse o José
Efigênio.
– Ela foi roubada há 200 anos e não amanheceu na praça. Já
está quase amanhecendo. Temos que roubar esta cabeça!
O Gê, muito aflito, tentou demovê-lo da ideia, argumentando
ser aquela uma festa de militares e autoridades. Qualquer loucura que se
fizesse iria acabar mal. Mas não adiantou. O José Efigênio já estava lá no beco
do Pilão à procura de uma escada que não encontrou. Decidiu então sacudir o
poste, no que foi ajudado pelo Gê. Tanto fizeram que a cabeça caiu, mas ficou
presa por uma corda. E agora? O que fazer? Havia uns mendigos dormindo na praça e com eles conseguiram um canivete com que foi cortada
a corda. A cabeça de gesso se espatifou no chão. Apressados e nervosos, pois o dia já clareava, os dois juntaram os cacos da
cabeça e colocaram na Brasília bege do Gê.
Seguiram para a casa do José Efigênio e bateram à porta.
Eram quase seis horas da manhã. Foram atendidos pela esposa dele sonolenta e
atordoada com as novidades. Os dois entraram levando os cacos até o fundo do
quintal, cavaram um buraco e enterraram a prova do crime. Combinaram que ninguém viu nada e, como há 200 anos atrás, ninguém sabia quem havia sido o
autor do roubo da cabeça do Tiradentes. Promessa selada, cada um foi descansar
em sua casa, pois a noite havia sido muito longa.
Mas a paz durou pouco. Às nove horas, aproximadamente, a
polícia estava na porta da casa do Gê e depois foi a vez do José Efigênio.
Ainda sonolentos, os dois artistas foram levados à delegacia.
O delegado era homem vaidoso, vestia-se à moda sertaneja,
com cinturão de fivela com cara de cavalo, calça apertada com gorgorão nas
laterais, uma camisa xadrez e botas de salto alto.
Ao interrogar nossos artistas, o homem foi duro. Acusou-os
de haver roubado um bem público. Aquela cabeça havia sido doada à Polícia
Militar e eles foram pegos em flagrante. Algumas pessoas, esperando ônibus do
outro lado da praça, viram tudo, e um deles guardou a placa do carro. Quando a polícia começou a investigar o roubo, o carro foi denunciado. Na Brasília do Gê encontraram restos de gesso. Não
havia como negar, as provas estavam ali.
José Efigênio ainda tentou explicar ao delegado que eles só
haviam repetido o feito histórico de 200 anos atrás, mas o delegado não sabia
nada de história e nem queria saber.
A coisa estava nesse ponto quando passou por ali o vereador
Flávio Andrade, e quis logo saber o que estava acontecendo. Ciente da situação,
levou José à casa dele, onde desenterraram a prova do crime. Aproveitaram para
pegar um livro onde estava escrita a história do roubo da cabeça. Telefonaram
para o diretor da Escola de Artes que os tranquilizou dizendo que tinha outras
cabeças de Tiradentes. Explicaram ao diretor a situação e ele, como amante das artes, gostou daquela "arte" feita pelos dois.
De volta à delegacia, onde havia permanecido o Gê, mostraram
ao delegado o livro e pediram que telefonasse ao diretor da Escola de Artes. O
delegado assim o fez, no que o diretor lhe disse que existiam outras cabeças e – mentindo – que o roubo
fazia parte das comemorações.
Soltos, os dois foram comemorar o sucesso torto de sua louca ação.
De manhã, pessoas que passaram pela praça, vendo a gaiola
vazia pensaram:
– Ouro Preto não tem jeito. É terra de vândalos, não
respeitam nada.
Outros tiveram reação oposta, como a funcionária do Museu da
Inconfidência que, ao abrir a janela, viu a gaiola vazia e suspirou aliviada
pensando:
– Que bom que alguém roubou a cabeça do Tiradentes. Era assim que
tinha de ser.
O vereador amigo disse que
ficou com inveja, ele gostaria de ter sido o autor do roubo da cabeça. Na rua, por onde passavam, os dois artistas eram
cumprimentados. A cidade inteira sabia o que tinham feito através da
rádio ou dos cochichos. A maioria havia aprovado. Era a resposta do povo ao
autoritarismo de todos os tempos.
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Texto adaptado do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier.
Obs.: Esta postagem foi realizada mediante prévia autorização da autora.
Para mais "causos" e contos de Angela Xavier, acesse o blog dela:
Compartilhando Histórias
http://www.angelaleitexavier.blogspot.com.br
Livro : Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto
O livro reúne mais de 70 histórias, ambientadas do século XVIII até início do XX, coletadas junto a moradores ou em livros sobre a cidade. Olavo Romano, responsável pelo prefácio, afirma que "Ouro Preto era cheia de fantasmas, uma cidade mal iluminada, repleta de capelas e cemitérios, onde ninguém saia de casa depois das 21 horas. Trata-se de um livro que narra a História de Ouro Preto de uma forma agradável, à maneira dos contadores de histórias, e está entremeada de lendas e causos. Começa chamando a atenção do leitor para a necessidade de se preservar aquilo que faz parte da nossa memória e relata a descoberta do ouro, os conflitos que surgiram no início e as revoltas".
A ênfase do livro é dada às histórias dentro da História, nas curiosidades que os livros de História não relatam, na sociedade que se formou ao redor das minas de ouro com suas crenças, seus valores e sua religiosidade. Relatos de grandes festas, de muitos casos assombrados e tesouros escondidos. A ilustração, com desenhos em bico de pena, é do artista plástico ouro-pretano José Efigênio Pinto Coelho.
Fonte: http://www.livrariaouropreto.com/lancamentos.html