Autor: Iacyr Anderson Freitas
Ninguém sabe ao certo qual foi o incidente que motivou a nossa guerra com os bárbaros do norte. E desde quando. Os poucos relatos dos antepassados dão conta de que a contenda é antiga. De certa forma, esta guerra medra em nós um traço distintivo. Fomos criados à sombra de seu sangue. Uma sombra que une povoados e fronteiras que não se conhecem, que jamais se conhecerão direito, mas lutam de um mesmo lado e ajudam-se mutuamente. O inimigo é poderoso e partilha da nossa língua. Ele invade e queima nossas plantações, rouba nosso gado e sacrifica nossos cavalos. Apesar disso, os últimos relatórios oficiais trazem notícias excelentes. Parece que conseguiremos atingir a vitória final em breve.
Em verdade nunca nos deparamos com um destes inimigos. Fiamos nos relatos. Nossa aldeia fica distante do lado norte da fronteira e jamais chegou a ser molestada pelos bárbaros. Daí a importância do que tenho a dizer agora. Alguns acreditam que esta guerra já se acabou há muito e que estamos desinformados. Todavia, viajantes que passam com suas cargas por nossas estradas dizem que a peleja anda feia lá pelas bandas do rio acima. Às vezes, perguntamos a esses viajantes se eles chegaram mesmo a conhecer, vivo ou morto, algum dos inimigos, mas, como sempre, nada viram. São pessoas de sorte, pois a natureza do seu trabalho é propícia ao contato com os bárbaros, que se especializaram, segundo consta, em assaltar carregamentos de toda espécie. Por isso, é comum entre esses freteiros um antigo provérbio: “O viajante que conhece os bárbaros no norte conhece sua última viagem”.
Tendo em vista a longa história desta guerra, seu emaranhado de sangue e selvageria, somos forçados a educar nossos filhos, desde tenra idade, para as artes militares. E para que o espírito de luta não esmoreça, é preciso manter bem acesa a chama do ódio que moveu nossos antepassados. Para tanto, contamos com as cartilhas oficiais, sempre pródigas nas descrições das atrocidades cometidas pelos bárbaros. De certa forma, tirante as visitas mensais do Fisco, essas cartilhas são as únicas lembranças que temos do governo. São o símbolo de nossa unidade e de nossa condição de obreiros de uma causa comum. Todos sabem, por exemplo, da importância dos tributos para a consecução dessa causa. Foi com o fruto da arrecadação de impostos que conseguimos construir nossa Capital. Uma obra esplêndida, fabulosa até. Sobre ela se debruçam, sem cessar, os mais eminentes historiadores. É uma pena que existam contradições nos relatos. Mas tudo leva a crer que tais contradições foram mesmo planejadas, com o propósito de confundir os bárbaros.
De acordo com um certo livro de memórias, a ideia de construir a Capital surgiu após um poderoso ataque inimigo. Nossos estrategistas militares pensaram em levantar uma cidade, protegida por altos muros circulares e sucessivos, separados por fossos de grande profundidade. Para que tal cidade não possa estar vulnerável e nenhum tipo de cerco ou ataque, sua extensão deveria ser de tal modo grandiosa que comportasse, dentro de seus muros, sete suntuosos palácios, três nascentes de água pura e campos de cultivo, irrigados e férteis. Assim não faltariam provisões, mesmo nos tempos mais difíceis. Foram consumidos anos na escolha do local apropriado, bem como na definição dos demais detalhes do projeto.
É impressionante imaginar que os estrategistas tenham pensado em tudo. A primeira grande artimanha foi manter em segredo absoluto o local da construção da Capital. Isso impediria qualquer aproximação dos bárbaros. Assim, para a construção, foram escolhidos inicialmente os presos e escravos, gente que, terminada a empresa, seria de pronto executada. Mas não foi possível, no decorrer dos inúmeros trabalhos, contar apenas com essa gentalha. Logo, lavradores e demais camponeses também foram convocados. Eram voluntários, gente que aceitou empenhar boa parte de suas vidas em prol da vitória sobre os bárbaros.
Velhas narrativas afirmam que esses voluntários foram levados de suas terras por comboios militares. Tinham os olhos vendados, as mãos e os pés amarrados à trave do carro. Tudo em função do sigilo. Outros testemunhos, decerto fantasiosos e que não contam com o beneplácito oficial, afirmam que, em nome de nossa pátria, ao fim da construção também os voluntários foram sumariamente executados. O mérito dessa primeira artimanha é inquestionável: ninguém sabe até hoje onde fica nossa Capital. Mesmo alguns dos altos funcionários públicos. Já que boa parte das estradas se encontra interditada, em decorrência dos perigos da guerra, o aventureiro que tentar desvendá-la encontrará grandes dificuldades e correrá enormes perigos.
A segunda grande artimanha dos estrategistas foi construir, dentro dos limites da Capital, um pavilhão de proporções gigantescas, destino à guarda de todos os nossos bens. Esse sim, de acordo com os testemunhos, acabou se tornando um duro golpe para os adversários. Tanto que o ritmo das invasões bárbaras se reduziu após o término das obras. Por um motivo simples: passamos a guardar nossas riquezas nesse pavilhão. Mensalmente, ao efetuar a arrecadação dos impostos, o funcionário confere nossos bens e, de modo sempre rígido e diligente, manda recolher tudo o que possua algum valor e não seja essencial à sobrevivência. Há uma implacável tabela para este fim, determinando quantidades máximas admissíveis, por faixa etária dos habitantes, para guarda ou consumo.
Importante frisar que tal método de “depósito compulsório” não representa, como dizem alguns detratores do regime, um modo vil de espoliação levado a efeito pelo governo. É, antes de mais nada, a certeza de que não seremos importunados pelos bárbaros. Como não ficamos com nenhuma riqueza, sobra de provisões ou reserva particular, mas apenas o indispensável, seria um risco grande e não compensatório para os invasores tal investida.
Mas também é verdade que o sistema de depósito vem sofrendo, na surdina, uma considerável resistência. Não são poucos os que, temendo as visitas do Fisco, passaram a esconder o que possa ter valor mais destacado. O problema se dá quando são flagrados. Já perdemos a conta do número de enforcamentos. Esse tem sido um dilema dos mais sérios nos últimos anos e foi tratado em detalhes na edição mais recente da cartilha oficial. Nela o governo reitera a necessidade da colaboração de todos para o atingimento dos objetivos comuns, ressaltando a convicção de que não podemos, em hipótese alguma, admitir traidores ou covardes em nosso meio. A causa é coletiva, diz o texto da cartilha, e precisa do apoio irrestrito de nossa gente, custe o que custar.
Apesar disso, o número de descontentes cresce a cada dia. Só não se tornou insustentável por causa dos enforcamentos. Pelo modo ríspido como os tributos são arrecadados fica difícil diminuir o grau de insatisfação. O método policialesco dos agentes já empurrou muitos dos nossos fervorosos partidários para o outro lado. É notável o caso do seleiro de nossa aldeia. Homem íntegro, defensor constante de todas as decisões governamentais, foi destratado pelo coletor de impostos em janeiro do ano passado. Inconformado, escreveu uma longa carta de denúncia, acusando o servidor público de cometer abuso de autoridade. O primeiro problema se deu ao tentar enviar a carta para a sede do governo, uma vez que ninguém sabia ao certo onde ela se situava. Logo, foi forçado a confiar o envelope ao próprio coletor de impostos, quando este compareceu à aldeia no mês seguinte.
O que foi feito de sua denúncia não há quem saiba, mas o certo é que o seleiro nunca obteve qualquer resposta. Sentindo-se traído em sua fé no regime, o homem declarou que caso não recebesse do servidor acusado ao menos um pedido formal de desculpas, iria à Capital a qualquer custo, voltaria com todos os bens que lhe foram tirados e, a contragosto, iria construir sua vida em outro reino. Com essa certeza, tomou caminho numa manhã de frio e chuva. Passaram-se seis meses sem nenhuma notícia de seu paradeiro, até que soubemos que, vítima de uma emboscada dos bárbaros, ele havia sido brutalmente assassinado em meados de setembro. Seu corpo foi encontrado com marcas de tortura, decapitado e pleno de facadas, por um freteiro que depois passou por nossa aldeia, relatando o ocorrido.
Há quem diga, à boca miúda, que o seleiro foi morto por gente do próprio governo, pois jamais sucederia um ataque bárbaro de tal porte a um homem velho e sozinho, tendo o corpo sido localizado lá pelas bandas meridionais do reino, onde nunca houve indício da chegada adversária. Quem diz tais coisas falta à verdade! Como o número de descontentes cresce a cada ano, é natural que cresçam também os boatos. Assim, há sempre alguém para dizer, baixinho e olhando para os lados, que a Capital foi construída em local incerto para que jamais tenhamos acesso a ela. Outros chegam mesmo a afirmar que a Capital foi obra dos próprios bárbaros, que assim podem nos espoliar ser derramar uma gota sequer de nosso sangue. Um dos viajantes, de passagem pelo armazém da aldeia, declarou certa vez que um conhecido seu chegou a avistar, de longe, do alto de um mirante, os muros e os portões da Capital – cujos alicerces se situam, de fato, em pleno território bárbaro. Tamanha assertiva não poderia deixar de causar grande comoção, sendo de pronto controlada por mais uma profilática série de oitivas e enforcamentos.
Deveríamos estar concentrados em nossos inimigos, e não em querelas internas, menores e passageiras. Outro dia, um novo boato tomou de assalto a aldeia. Às caladas, andava pelas esquinas o relato de um freteiro que afirmara, sabe-se lá com que grau de confiabilidade, que o reino bárbaro também possuía uma Capital desconhecida e o mesmo sistema de “depósito compulsório”. Esse tresloucado relato deu a muitos a certeza de que, na verdade, os bárbaros do norte também são escravos dessa guerra, alimentada por um poder único. A Capital seria, de acordo com tal devaneio, a sede comum e a cruz suprema dos dois povos. O esplendor de seus muros e palácios representaria o abençoado fruto da nossa discórdia. É incrível como um disparate desses consegue obter crédito.
Considerando-se que a história narrada pelo freteiro seja verdadeira – o que é muito improvável – não poderíamos imaginar que os bárbaros do norte, ao tomarem consciência do modo como construímos a nossa sede do governo, tivessem tentado imitar, numa atitude de desespero, as nossas artimanha? Não poderíamos imaginar que os muros e portões da cidade fortificada vistos em um mirante qualquer por um conhecido de um anônimo seriam de fato pertencentes à Capital bárbara? É necessário deitar de lado o óbvio e procurar explicações fabulosas e mirabolantes?
Aqui e ali ouvimos eclodir a injustiça cometida contra o filho do coordenador do Serviço de Limpeza Pública, um rapaz estudioso e inteligente, contudo um pouco aluado. Sempre enredado em livros, frequentando sozinho nossa única biblioteca, esse rapaz, após muitas pesquisas, decidiu certo dia escrever a história de nossa região. Depois de devorar todos os tipos de literatura, detendo-se amiúde até mesmo nos relatos orais dos mais velhos e dos menos cultos, ele começou a redigir o primeiro tomo da série, prevista para terminar seis anos depois, após a publicação do oitavo volume.
No prefácio desse primeiro tomo, cuja edição mal chegara a cinquenta exemplares, o jovem autor declarava que seria possível renovar a história e, por conseguinte, o próprio passado. Segundo ele tudo seria uma questão de linguagem. Seu método de trabalho consistia em combinar as mesmas frases dos velhos livros, tendo como alvo o texto submetido a outros ângulos de visão. Não a realidade factual, ou o que dela restou gravado, mas inversões sintáticas, deslocamentos bruscos de pontuação e permutas de vocábulos. É forçoso reconhecer que o sistema criado pelo aluado historiador exigia dedicação. Frases de livros eram fundidas em sequências costuradas aqui e ali com os relatos orais, até mesmo preces e benzeduras. De tudo isso um novo passado brotava.
Todo este disparate não poderia deixar de ter seu preço. Como imaginar que a grandeza de um passado havia de ser mudada assim, através de uma simples combinação de frases? O autor afirmava que reescrever o passado corresponderia a “fundar agora o que já fomos”, baseando-se na constatação de que tempo e linguagem são naturezas móveis, incapazes de serem apreendidas em repouso. O certo é que, por conta do livro, o autor foi enforcado numa tarde de agosto, cinzenta e fria. Nos autos do processo que se descortinou logo após a publicação da obra, cujos exemplares foram apreendidos e queimados em praça pública, consta que, tentando se defender, o acusado chegou a afirmar que fizera apenas um exercício de ficção, tendo como pano de fundo os fatos históricos. Mas a defesa não foi acatada e o enforcamento se deu no dia seguinte, sem muitas pompas.
Estes enforcamentos são o delírio e algumas vezes, o calvário dos descontentes. Mas tudo parece estar sob controle agora. Apesar disso, é normal correr à boca pequena versão distorcida e maldosa dos fatos. É lamentável! Não é de todo incomum que, de vez em quando, apareça em nossa aldeia a notícia de que são fantasiosos os relatos oficiais acerca da morte de algum combatente bárbaro. Os mexeriqueiros de plantão dizem que o governo tem incentivado o sacrifício de mendigos e andarilhos – quando não os faz com as próprias mãos – em lugar dos verdadeiros inimigos. Existe até quem declare que os bárbaros não são mais o alvo do nosso poder constituído. Hoje a grande peleja seria, portanto, de natureza interna: contra os guerrilheiros que combatem o jugo da Capital e dos depósitos compulsórios.
Como ninguém sabe ao certo quem são os bárbaros ou qual é o melhor meio de identificá-los, há uma desconfiança muito grande pesando a cabeça da cada desconhecido. Assim a horda de insatisfeitos está sempre disposta a asseverar que o cadáver anunciado não é de um inimigo, mas sim de um esmoleiro qualquer. Foi uma honra desmentir esses boatos, eu que sou agora reconhecido como um dos notáveis do reino.
Tudo se deu numa manhã de muita neblina. Era outubro. Eu caminhava pelas montanhas quando repentinamente vi um vulto. Creio que se esgueirava pelos arbustos laterais, acompanhando-me na subida. Ao perceber tal fato, parei de súbito e, pegando da adaga, parti a seu encontro. Afastei os galhos secos e avistei, assombrado, o que parecia ser um soldado inimigo. Estava desarmado e trazia os pés feridos. Com minha adaga já quase tocando sua barba senti o desespero que o tomara. Lá estava ele, desgarrado de sua terra e seus exércitos, curvado pela fome e pelo frio. Compreendi o erro que contamina os detratores do nosso regime. Em decorrência de muitas adversidades, é comum que os bárbaros nos pareçam mendigos ou andarilhos. É preciso não fiar nas aparências, reza o ditado.
Não sei ao certo quanto tempo se passou enquanto eu, mirando-o, soletrava em seu rosto cada sombra de susto ou pavor. Foi tudo muito rápido e sem troca de palavras. Então me veio aquela magnífica certeza. Aquela súbita alteração de rumos. Percebi, bem no fundo dos seus olhos, o mesmo terror que, incontáveis vezes, eu também sentira pelos bárbaros. Naquele momento vi que tudo não passava de um grande erro. Eu, como se diante de um espelho, surgia da treva qual um selvagem, cruel e desumano. Respirei, perplexo, o cristal difícil de nossa igualdade.
Como um deus, eu tinha nas minhas mãos a sentença, eu poderia salvar alguém que era exatamente igual a mim e que estava, naquele instante, desarmado de família, de amigos, de pátria e de esperança. Desarmado de qualquer futuro. Abrandei um pouco o peso da adaga e tentei vê-lo de outro ângulo. Mas não havia outro ângulo: à frente estava um outro eu, tão indefeso quanto qualquer uma das minhas tão buriladas convicções.
Só por isso, confesso agora, não pude deixar de matá-lo.
Texto adaptado do livro de contos Trinca dos traídos de Iacyr Anderson Freitas.
Editora Nankin Editorial, São Paulo, 2003.