O sotaque das mineiras
Autor: Carlos Drummond de Andrade
Isis Valverde
Atriz mineira
Imagem: facebook.com
O sotaque das mineiras deveria ser ilegal, imoral ou engordar.
Porque, se tudo que é bom tem um desses horríveis efeitos
colaterais, como é que o falar lindo (das mineiras) ficou de fora? Porque,
Deus, que sotaque!
Mineira deveria nascer com tarja preta avisando: ouvi-la faz mal
à saúde.
Se uma mineira, falando mansinho, me pedir para assinar um
contrato doando tudo que tenho, sou capaz de perguntar: – Só isso? Assino
achando que ela me faz um favor.
Eu sou suspeitíssimo. Confesso: esse sotaque me desarma.
Os mineiros têm um ódio mortal das palavras completas.
Preferem abandoná-las no meio do caminho, não dizem "pode
parar", dizem "pó parar"; não dizem "onde eu estou?", dizem "ôncôtô?".
Os não-mineiros, ignorantes nas coisas de Minas, supõem, precipitada e
levianamente, que os mineiros vivem linguisticamente falando apenas uais, trens
e sôs. Digo-lhes que não. Mineiro não fala que o sujeito é competente em tal ou
qual atividade, fala que ele é bom de serviço. Pouco importa que seja um juiz
ou jogador de futebol.
Mineiras não usam o famosíssimo "tudo bem". Sempre que duas
mineiras se encontram, uma delas há de perguntar pra outra: – "Cê tá boa?".
Para mim isso é pleonasmo! Perguntar para uma mineira se ela tá boa é
desnecessário.
Há outras. Vamos supor que você esteja tendo um caso com uma
mulher casada. Um amigo seu, se for mineiro, vai chegar e dizer: – "Mexe" com
isso não, sô (leia-se: sai dessa, é fria, etc.). O verbo "mexer", para os
mineiros, tem os mais amplos significados. Quer dizer, por exemplo, trabalhar.
Se lhe perguntarem com o que você mexe, não fique ofendido. Querem saber o seu
ofício.
Os mineiros também não gostam do verbo conseguir. Aqui ninguém
consegue nada. Você não dá conta. "Sôcê" (se você) acha que não vai chegar a
tempo, você liga e diz: – "Aqui", não vou dar conta de chegar na hora, não, "sô".
Esse "aqui" é outro que só tem aqui. É antecedente obrigatório, sob pena de
punição pública, de qualquer frase. É mais usada, no entanto, quando você quer
falar e não estão lhe dando muita atenção. É uma forma de dizer: – Olá, me
escutem, por favor. É a última instância antes de jogar um pão de queijo na
cabeça do interlocutor.
Mineiras também não dizem "apaixonada por", dizem, sabe-se lá
por que, "apaixonada com". Soa engraçado aos ouvidos forasteiros. Ouve-se a
toda hora: – Ah, eu apaixonei "com" ele… Ou: Sou doida "com" ele (ele, no caso,
pode ser você, um carro, um cachorro). Elas vivem apaixonadas com alguma coisa.
Que os mineiros não acabam as palavras, todo mundo sabe. É um
tal de "bonitim", "fechadim", e por aí vai. Já me acostumei a ouvir: – E aí, "vão?".
Traduzo: – E aí, vamos? Não caia na besteira de esperar um "vamos" completo de
um mineiro. Não ouvirá nunca!
Eu preciso avisar à língua portuguesa que gosto muito dela, mas
prefiro, com todo respeito, a mineira. Nada pessoal. Aqui certas regras não
entram. São barradas pelas montanhas. Por exemplo, em Minas, se você quiser
falar que precisa ir a um lugar, vai dizer: – Eu preciso "de" ir. Onde os mineiros
arrumaram esse "de", aí no meio, é uma boa pergunta. Só não me perguntem. Mas
que ele existe, existe. Asseguro que sim. Deixa eu repetir, porque é
importante. Em Minas ninguém precisa ir a lugar nenhum. Entendam… você não
precisa ir, você precisa "de ir". Você não precisa viajar, você precisa "de
viajar". Se você chamar sua filha para acompanhá-la ao supermercado, ela
reclamará: – Ah, mãe, eu preciso "de" ir?
No supermercado, o mineiro não faz muitas compras, ele compra um
"tanto de coisa". O supermercado não estará lotado, ele terá um "tanto de gente".
Se a fila do caixa não anda, é porque "tágarrado" ("está agarrado") lá na
frente. Entendeu? Agarrar é agarrar, ora!
Se, saindo do supermercado, a mineirinha vir um mendigo e ficar
com pena, suspirará: – "Ai, gente, que dó".
É provável que a essa altura o leitor já esteja apaixonado pelas
mineiras. Não vem "caçar confusão" pro meu lado. Porque devo dizer, mineiro não
arruma briga, mineiro "caça confusão" Se você quiser dizer que tal sujeito é
arruaceiro, é melhor falar, para se fazer entendido, que ele "vive caçando
confusão".
Para uma mineira falar que algo é muitíssimo bom, vai dizer: – "Ô,
é sem noção"! Só não esqueça, por favor, o "Ô" no começo, porque sem ele não
dá para dar noção do tanto que algo é sem noção, entendeu?
Capaz… Se você propõe algo, ela diz: – "Capaz"!!! Vocês já
ouviram esse "capaz"? É lindo! Quer dizer o quê? Sei lá, quer dizer "cê acha
que eu faço isso!?" com algumas toneladas de ironia…
Se você ameaçar casar com a Gisele Bundchen, ela dirá: – "Ô dó docê".
Entendeu? Não? Deixa para lá. É parecido com o "nem…". Já ouviu o "nem…"? Completo
ele fica: – "Ah, nem"… O que significa? Significa, amigo leitor, que a mineira
que o pronunciou não fará o que você propôs de jeito nenhum. Mas de jeito
nenhum mesmo. Você diz: – Meu amor, "cê" anima de comer um tropeiro no
Mineirão? Resposta: – "Nem…". Ainda não entendeu? Uai, nem é nem.
A propósito, um mineiro não pergunta: – Você não vai? A pergunta,
mineiramente falando, seria: – "Cê" não anima "de" ir? Tão simples... o resto
do Brasil complica tudo! É, ué, cês dão umas volta pra falar os trem…
Falando em "ei…", as mineiras falam assim, usando, curiosamente,
o "ei" no lugar do "oi". Você liga, e elas atendem lindamente: – "Eiiii!!!",
com muitos pontos de exclamação, a depender da saudade…
Tem tantos outros… O plural, então, é um problema. Um lindo
problema, mas um problema. Sou, não nego, suspeito. Minha inclinação é para
perdoar, com louvor, os deslizes vocabulares das mineiras. Aliás, deslizes
nada. Só porque aqui a língua é outra, não quer dizer que a oficial esteja com
a razão. Se você, em conversa, falar: – Ah, fui lá comprar umas coisas… – "Ques
coisa?" – ela retrucará. O plural dá um pulo. Sai das coisas e vai para o que.
Ouvi de uma menina culta um "pelas metade", no lugar de "pela
metade". E se você acusar injustamente uma mineira, ela, chorosa, confidenciará:
– Ele pôs a culpa "ni mim". A conjugação dos verbos tem lá seus mistérios, em
Minas. Ontem, uma senhora docemente me consolou: "preocupa não, bobo!". E meus
ouvidos, já acostumados às ingênuas conjugações mineiras, nem se espantam.
Talvez se espantassem se ouvissem um: "não se preocupe", ou algo assim.
A fórmula mineira é sintética. E diz tudo. Até o tchau, em
Minas, é personalizado. Ninguém diz tchau pura e simplesmente. Aqui se diz: "tchau
pro cê", "tchau pro cêis". É útil deixar claro o destinatário do tchau.
Trem bão demais, sô…
Nota:
Tem mais algumas expressões do mineirês que escuto (e digo) com frequência:
• “Ué”. Uma variação e alternativa do "uai", com as mesmas possibilidades de uso.
• “Tiquim” (Pouquinho) nas situações em que se deseja dar a ideia de muito pouco. Mineiro não pede um pouco de café, ele diz que quer "só um tiquim de café".
• “Pá raí” (Para raio) dizendo que algo é muito. Se algum
lugar é quente, se diz que “é quente pá rai”. Se está muito tarde, está “tarde
pá raí”.
• “Cê besta” (Você é besta) para situações em que não se deve entrar ou atitudes que não se deve fazer. É também uma forma de dizer "de jeito nenhum!". Se alguém convida um mineiro para entrar num jardim onde tem um cachorro bravo, ele vai te responder um "cê besta!" dizendo algo como "eu não faço isso de jeito nenhum e se você fizer é louco". Se pedir dinheiro emprestado para um mineiro com quem não se tenha muita, muita, muita intimidade, quase certamente ouvirá como resposta um simples "cê besta!" afirmando que não te emprestará dinheiro de jeito nenhum. Algo tão impensável para o mineiro que ele nem se dá ao trabalho de estender a resposta com explicações ou condições. Para um mineiro, o "cê besta!" é o não definitivo, sem direito a apelação.
Se o mineiro disser "cê besta, sô!" é bom o interlocutor ficar atento, pois o "sô", neste contexto, é uma afirmação de indignação, um aviso de que o mineiro está no limite de uma atitude violenta.
• “Arreda” ("Afastar" ou "Arrastar"). Alguns exemplos: "Arreda (afasta) um pouco pra eu passar" ou "Arreda (arrasta) essa geladeira um pouco pra lá".
Obs.: Assim como as mineiras, as gaúchas também têm um hipnótico jeito de
falar cantando, que vai envolvendo e entorpecendo o ouvinte, como se fossem
sereias.
Se você conhece outras expressões típicas do mineirês, escreva elas nos comentários desta postagem, com a devida grafia e tradução do contexto.
Vídeos
Dois exemplos do jeitim de falar das mineiras:
A atriz Mariana Rios em entrevista com o Jô Soares
(9:30)
https://www.youtube.com/watch?v=xUpmhJVzaig
A atriz Isis Valverde em entrevista com o Jô Soares
(15:00)
https://www.youtube.com/watch?v=SXkeluOVUyc