sábado, 17 de março de 2018

Ofício das Trevas


Ofício das Trevas - Tenebrário e o altar ao fundo
Foto : Ahmad Jarrah

A Semana Santa tem muitas simbologias que passam despercebidas aos desatentos ou que ignoram seus ritos e significados. Não sou religioso ou conhecedor das liturgias*, mas com o passar do tempo tenho crescente convicção que para encarar a vida com mais leveza e esperança a espiritualização é uma necessidade mais do que uma opção! Um rito católico tem chamado minha atenção nos últimos tempos: o Ofício das Trevas.
"Ofício" no sentido de ser um trabalho, um conjunto de atividades, no caso uma missa prolongada e com mais pompa, recitada em latim e que inclui coral e orquestra. "Trevas" seguindo uma concepção popular, onde o misticismo, desde pelo menos a Idade Média, considera como o período das trevas o horário compreendido entre a meia-noite e o primeiro cantar do galo  tempo em que os demônios estariam livres para andar na Terra  diferenciando assim a escuridão (ausência de luz devido ao período noturno) das trevas (condição para a propagação do mal).
O nome faz referência à três contextos:
1 - As trevas naturais de meia-noite ao amanhecer, lembrando as palavras de Cristo: "Haec est hora vestra et potestas tenebrarum" (Esta é a vossa hora e do poder das trevas.) (Lc 22, 53).
2 - As trevas litúrgicas (escuridão na igreja), quando durante as cerimônias apagam-se todas as luzes na igreja, exceto uma.
3 - As trevas simbólicas da paixão de Cristo (Paixão é o termo teológico cristão utilizado para descrever os eventos e os sofrimentos – físicos, espirituais e mentais – de Jesus nas horas que antecederam seu julgamento e sua execução).
As informações que aqui compartilho são resultado de interesse leigo sem pretensões e pesquisa não muito frutífera, uma vez que alguns detalhes ficaram sem resposta para mim. Autores mais capacitados nos blogs e sites referenciados a seguir podem aprofundar as informações sobre o assunto. Caso eu tenha cometido erros ou omissões, peço e agradeço desde já comentários para melhorar a qualidade e confiabilidade desta publicação, que serão incorporados ao texto.

* Liturgia: conjunto dos elementos e práticas do culto religioso (missa, orações, cerimônias, sacramentos, objetos de culto, etc.) instituídos por uma igreja ou seita religiosa.

Ofício de Trevas - São João del-Rei (2014)
Foto : Thiago Morandi

O Ofício das Trevas (matutina tenebrarum, em latim), também conhecido como Ofício de Trevas, é uma liturgia cristã relacionada à Paixão de Cristo, que existe desde o século 13, realizada nas três últimas noites da Semana Santa – o período mais dramático da Quaresma, denominado Tríduo Pascal – após a meia-noite, através de matinas (na madrugada) e laudes (na manhã), usando a simbologia das luzes de velas. 
O Ofício das Trevas, na Forma Extraordinária, é celebrado em latim na Quinta-Feira Santa, Sexta-Feira da Paixão e Sábado Santo, realizado na noite anterior (o de Quinta-Feira na noite da Quarta-feira Santa, e por aí vai), sendo composto de duas horas litúrgicas (as Matinas e as Laudes). Dependendo da cidade onde é realizado o ofício, as rezas são acompanhadas ou intercaladas por um coral gregoriano e/ou orquestra. Na medida em que se completam as rezas de um salmo, apaga-se uma das 15 velas colocadas num candelabro triangular chamado Tenebrário.

Glossário:

Matinas
Primeira parte do ofício religioso, rezada antes do amanhecer. As matinas ou Ofício de Leituras é uma das horas litúrgicas constituintes da Liturgia das Horas.

Laudes
Parte do ofício religioso que se segue às matinas.

Tenebrário
Um tenebrário (tenebrarum, em latim) é um candelabro de forma triangular com quinze velas, dispostas escalonadamente, que se vão apagando progressivamente ao término dos salmos do profeta Jeremiascomeçando pelo ângulo inferior direito, durante o ofício religioso de Sexta-feira Santa. O tenebrário fica no presbitério (espaço no templo cristão, situado junto do altar-mor).
As velas são feitas de cera amarela ou comumficando acendida ao término apenas a mais alta, comumente de cor branca, que representa a luz de Cristo.

Liturgia das Horas
A Liturgia das Horas (também chamada Ofício Divino) é a oração pública e comunitária oficial da Igreja Católica. A palavra ofício vem do latim "opus" que significa "obra". É o momento de parar em meio a toda a agitação da vida e recordar que a Obra é de Deus.
Consiste basicamente na oração quotidiana em diversos momentos do dia, através de salmos e cânticos, da leitura de passagens bíblicas e da elevação de preces a Deus. Com essa oração, a Igreja procura cumprir o mandato que recebeu de Cristo, de orar incessantemente, louvando a Deus e pedindo-Lhe por si e por todos os homens.

Canto Gregoriano
Por volta do século 6, o papa Gregório I (Gregório Magno) selecionou, compilou e sistematizou os cânticos eclesiásticos e diferentes liturgias ocidentais espalhados pela Europa com o objetivo de unificá-los para serem utilizados nas celebrações religiosas da Igreja Católica. É de seu nome que deriva o termo gregoriano.
O canto gregoriano, também chamado de cantochão, é um gênero de música vocal de uma só melodia, para apenas uma voz, posteriormente adaptado para também ser cantado por uma voz principal acompanhada por outras que repetem uma melodia base, com o ritmo livre e não medido. As características foram herdadas dos salmos judaicos, cantados nas antigas sinagogas, em conjunto com costumes locais, como das Igrejas Orientais, assim como dos chamados modos gregos.
Somente este tipo de prática musical podia ser utilizada na liturgia ou outros ofícios católicos. Só no período final da Idade Média é que a polifonia (harmonia obtida com mais de uma linha melódica em contraponto) começou a ser introduzida nos ofícios da cristandade de então, e a coexistir com a prática do canto gregoriano.

Candelabro Tenebrário (tenebrarum, em latim) usado no Ofício das Trevas

Os ritos e significados do Ofício das Trevas

Cada dia da Semana Santa tem um significado:
+ Quarta-feira Santa: Dia em que Judas combina com os sacerdotes judeus o pagamento de trinta moedas de prata para trair Jesus.
+ Quinta-feira Santa: É o dia da última ceia, quando Jesus lavou os pés dos apóstolos. É durante o momento do lava-pés que Judas Iscariotes sai para chamar os guardas que prenderão Jesus. Neste dia Cristo instituiu o Santo Sacrifício (a eucaristia da hóstia consagrada) e encoraja os discípulos a amarem-se uns aos outros. Depois Jesus dirigi-se ao monte de Getsêmani, junto a três discípulos, e começa sua agonia nos jardins, onde foi preso pelos judeus.
A Igreja Católica inicia a vigília ao Santíssimo, relembrando os sofrimentos começados por Jesus nesta noite.
+ Sexta-feira da Paixão (Sexta-feira Santa da Paixão do Senhor): Após ser julgado por Pôncio Pilatos, Jesus recebe uma coroa de espinhos e é açoitado enquanto arrasta sua cruz até ao monte Calvário. Ao meio-dia é crucificado entre dois ladrões e por volta das três da tarde, Jesus morre.
Neste dia, é praticado pelos católicos o jejum e a abstinência da carne em sinal de penitência e respeito pela morte de Jesus Cristo.

Na medida em que se realiza o ofício,  ao final de cada um dos salmos que vão sendo cantados, o cerimoniário (clérigo encarregado da organização e direção dos ofícios litúrgico) apaga uma das velas do tenebrário, e também vão se apagando as luzes do templo, de trás para frente, de modo que ao longo da cerimônia a igreja fica progressivamente na escuridão deixando apenas a região do altar iluminada. Ao término do ofício, o oficiante e os que o seguem fecham seus livros de modo propositalmente estrondoso, significando o fim da palavra de Jesus (o que poderia ser dito diretamente por ele, ainda estando vivo)Quando resta apenas a vela branca no ponto mais alto do candelabro e termina o último salmo, o oficiante leva esta vela acesa para trás do altar e se mantém assim longe de todos os olhares durante a recitação do Miserere e da oração de conclusão que se segue a esse salmo, ficando a igreja às escuras e depois em silêncio por alguns instantes, havendo a seguir o bater dos pés dos presentes no chão do templo (o efeito sonoro se torna mais dramático nas antigas igrejas com seus soalhos de madeira!), simbolizando o terremoto que se seguiu na ocasião à morte de Cristo.
vela branca que permaneceu acesa durante todo o rito é então trazida novamente às vistas do público e recolocada no lugar mais alto do candelabro (Tenebrário), anunciando o fim do Ofício das Trevas com a persistência da luz de Cristo entre nós.

• As velas que vão se apagando representam os discípulos e seguidores, que pouco a pouco abandonam Cristo durante a Paixão. A crescente escuridão com o apagar das velas simboliza o estado de ânimo de Jesus nos momentos que antecedem sua prisão, o tempo no cárcere, o julgamento injusto, o sofrimento da ida para a crucificação e a dor na cruz, até a extinção de sua vida corpórea. O progressivo apagar das lâmpadas do templo, acompanhando as velas, simboliza o luto da Igreja Católica diante da Paixão e morte de Cristo.
• O período em que a vela branca é levada acesa para detrás do altar representa  o breve tempo em que Cristo se retira do meio dos homens e baixa ao túmulo, para reaparecer depois, em luz e esplendor, simbolizando que mesmo quando fora da visão dos homens, a iluminação que vem de Jesus não se apaga e continua a servir como exemplo e guia.
• A parte final do Ofício das Trevas possui diferentes versões, conforme adaptações regionais. Li relatos que em algumas igrejas, juntamente com o bater dos pés que simboliza o tremor na morte de Jesus, são também repicadas as matracas para aumentar o impacto sonoro. No retorno da vela acesa para a visualização do público e sua recolocação no ponto mais alto do candelabro, enquanto em São João del-Rei todas as luzes da igreja são acesas, em Ouro Preto o templo permanece às escuras, iluminado apenas pela vela, enquanto o povo se retira após o término da missa (talvez simbolizando que naquele momento domina o luto da escuridão da morte de Cristo, mas há ainda esperança e fé – pequena chama – que se tornará esplendor de iluminação quando da ressurreição de Jesus, daí a alguns dias).  
• O rito das velas no Ofício das Trevas celebra a permanência da luz de Cristo (sua essência) em meio à humanidade mesmo após a morte de seu corpo, sendo a ressurreição celebrada apenas dias depois, no Domingo de Páscoa.

Apagando vela do tenebrário durante o Ofício de Trevas

No site abaixo existem três links mostrando as orientações para a condução do rito religioso e rezas usadas na Quinta-Feira Santa, Sexta Feira da Paixão e Sábado Santo, durante o período do Ofício das Trevas.

Salvem a Liturgia
Ofício de Trevas, em português, no rito moderno 


Abaixo disponibilizo os links dos documentos de cada um dos três dias, arquivados no Google, onde podem ser copiados ou impressos:

Quinta-feira Santa

Missa In Coena Domini 

Sexta-feira Santa da Paixão do Senhor
Missa Matutina Tenebrarum  

Orquestra Ribeiro Bastos - Ofício das Trevas - São João del-Rei (2011)
Imagem: http://pompeanodamemoria.blogspot.com.br/semana-santa-em-sao-joao-del-rei-mg 

Vídeos:

Tradicional Ofício de Trevas é realizado na Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar


Ofício de Trevas em Ouro Preto - 2014 (Encerramento)


Ofício das Trevas em São João del-Rei - 2017 (Encerramento)

Fontes de referência:


A Lente
Ofício de Trevas 

Um conjunto de belas fotos ilustra esta publicação

Salvem a Liturgia
Oficio das Trevas na Catedral de Frederico Westphalen - RS 

Um conjunto de fotos ilustra esta publicação


Arautos do Evangelho
O Ofício das Trevas
Semana Santa: Você conhece o “Ofício de Trevas”?

Pedagogia Litúrgica: "Tríduo Pascal e Tempo Pascal"  


Barrancas
Significado de cada dia da Semana Santa 


2 comentários:

  1. Olá, pesquisando encontrei o seu trabalho sobre o ofício de trevas. Apenas duas observações. 1) quanto à essa expressão: ""Ofício" no sentido de ser um trabalho, um conjunto de atividades, no caso uma missa prolongada e com mais pompa, recitada em latim e que inclui coral e orquestra". NÃO SE TRATA DE MISSA, MAS DE UM OFÍCIO LITÚRGICO. NÃO É CELEBRADO COM A EUCARISTIA.

    2) Acho que a expressão que melhor identifica essa liturgia seria "ofício de trevas e não "das trevas". "Das trevas" indica as trevas do mal. Não é o caso. "De trevas", mais corretamente indicaria o período noturno, sem iluminação, o que não está, necessariamente, conectado com as trevas do mal. Muito obrigado pelo seu excelente contributo. Frei Alfredo, SIA

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