sábado, 30 de março de 2019

Mundo cru(el)

Quando eu era adolescente – na década de 1980 – considerava pejorativamente o "verniz social" como uma forma de hipocrisia, um modo de relacionamento comunitário baseado na superficialidade e falsidade. Atualmente, diante da crescente intolerância e falta de elegância que tem orientado a convivência, passei a sentir saudade daquele esforço para um mínimo de refinamento no trato das pessoas com aquilo que as cerca. Na praticidade e humildade que o passar dos anos nos força adotar considero mais saudável uma agradabilidade fingida do que uma sincera estupidez.
Me parece que estamos mais crus no modo de perceber e lidar com esta oportunidade dadivosa chamada vida! Consequentemente, o trato das pessoas com outras pessoas, com os animais e a natureza está cada vez mais bestializado (no sentido de ser nivelado aos animais irracionais). De cru para cruel é uma distância pequena, uma continuidade não só na forma de escrever (cru+el), mas também na de agir. 
A crueza da falta de percepção, gratidão e perspectiva leva a existir apenas para o momento presente, sem levar em consideração o passado ou se preocupar com o futuro. As ações são orientadas para o conforto e felicidade do agora, seja conseguindo o que se quer ou eliminando o que não se quer. Daí as pessoas com quem se convive se tornarem um obstáculo incômodo (para transitar por onde necessita, para a pessoa desejada, para a vaga de trabalho, para a prática da política, para a forma de entender Deus, etc.), algo a ser evitado ou atacado, empobrecendo assim a capacidade de viver a diversidade e os conflitos inerentes ao coabitar espaço com outros seres.

A crueza da satisfação apenas dos instintos e ações básicas (acordar, comer, copular, descansar, proteger-se) leva à crueldade para consegui-los. É um egocentrismo que ignora as consequências do que fazemos no momento e não tem vontade de deixar um legado para o futuro. É uma negação da importância da cultura como construção coletiva e superior a si.
Vamos nos tornando insensíveis a situações que não deveriam acontecer porque estas ocorrem com frequência e intensidade progressivas, por isso nos parecem normais, até que somos atingidos por alguma, e percebemos o quanto são danosas. 
O nível de possessão e descaso com as mulheres por parte dos homens no Brasil tem atingido patamares cada vez mais extremos e intoleráveis, com estupros, sequestros, espancamentos brutais, ataques com ácido e uma variedade de crueldades desnecessárias e covardes. Somando-se ao desrespeito às mulheres, os recentes massacres em Suzano (SP) e na Nova Zelândia (entre outros) mostram um novo tipo de terrorismo, onde não há motivação ideológica e vínculo com grupos extremistas. Se dissemina agora o terrorismo solitário motivado pelo narcismo e pelo ódio gerado na incapacidade de lidar com frustrações e diferenças, onde uma pessoa usa os recursos a que tem acesso para destruir aos outros porque esses não correspondem às suas expectativas.
Acredito que a facilidade típica do século 21 de se conectar e desconectar com pessoas e lugares tenha diminuído a capacidade de convivência e lidar com insatisfações. A falta de habilidade em lidar com o que desagrada ou é desigual leva os inábeis sociais ao desejo de aniquilamento – dos outros e de si  em comportamentos radicais e perversos.

Nos séculos 17 e 18 os iluministas acreditavam que o avanço das filosofias e ciências levariam a humanidade a um patamar de inteligência e eficiência que tornaria o mundo indubitavelmente melhor. No século 19, o positivismo defendia que o conhecimento científico devia ser reconhecido como o único conhecimento verdadeiro, tornando os seres humanos mais racionais do que passionais, sendo assim mais construtivos. No século 20, a enorme variedade e velocidade de novas tecnologias era apontada como ferramentas para libertar as pessoas de tarefas cotidianas e repetitivas, propiciando mais tempo livre a ser investido na melhoria da qualidade de vida (lazer, exercícios, estudos, família, etc.).
Essas expectativas se mostraram frustantes em sua maior parte! Houve melhoria no padrão de vida (mais acesso a comida, diversão, medicamentos, informações, etc.), mas não na qualidade de vida (felicidade, autoconhecimento, perspectiva social, etc.) para a maioria dos atuais habitantes do planeta.

Gostaria de ter uma solução para esta situação, ao menos uma sugestão, mas não encontrei até agora uma equação que conduza a um bom resultado! (Re)Educação seria a resposta óbvia, mas esse é um investimento em longo prazo, com ganhos incertos para quem precisa de mudanças o quanto antes. Para dificultar, há no Brasil uma confusão entre educação e instrução. Instrução é um conjunto de conhecimentos científicos e acadêmicos ensinados na escola ao longo de anos, numa grade de assuntos, para formação de uma cultura nacional e capacitação pessoal para cidadania e escolha de uma profissão. Educação é um conjunto de valores morais, religiosos e sociais, que incluem a inteligência emocional para lidar com a vivência individual e coletiva, e também a inteligência intelectual aprendida na escola. Tem muitos pais e responsáveis – por conveniência ou incapacidade – tentando terceirizar suas funções para a escola... e quando a família falha ou se omite na criação de um indivíduo, este não chega ao estágio de cidadão, que se sente inserido num grupo no qual tem direitos e deveres. Quem se sente pária ou vítima num grupo tem tendência a se torna um cru(el) carrasco do mundo!

Violência cotidiana

sábado, 16 de março de 2019

RFFSA

62º aniversário de criação da Rede Ferroviária Federal

RFFSA - Estação Ferroviária de São José dos Campos (SP)

Há 62 anos, em 16 de março de 1957, mediante autorização da Lei nº 3.115 assinada pelo presidente Juscelino Kubitschek, era criada a Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA). A rede existiu por 50 anos e 76 dias. A liquidação foi iniciada em 17 de dezembro de 1999, por deliberação da Assembleia Geral de Acionistas durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, sendo definitivamente extinta pela Lei Federal n° 11.483, de 31 de maio de 2007, assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Motivo de orgulho nacional e esperança de desenvolvimento econômico quando criada, a RFFSA ao longo dos anos foi transformada num cabide de empregos de nomeados políticos em seu alto escalão,que diminui sua eficiência. Falta de planejamento em médio e longo prazo por parte de sucessivos governos também impediu que a empresa tivesse uma efetividade no mesmo nível da dedicação e comprometimento mostrados pelos funcionários de médio e baixo escalão, que comumente se referem à empresa como sua segunda família, em impressionantes demonstrações de carinho e respeito. Na sua fase final, a falta de investimentos financeiros básicos e contratação de pessoal para reposição dos que se aposentavam também diminuiu a eficácia da empresa (nos mesmos moldes que vem acontecendo atualmente com a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos).

O inconsequente abandono do projeto de uma rede ferroviária estatizada é hoje gargalo logístico que dificulta um sistema integrado e amplo de transporte ferroviário de passageiros num país de extensão continental. Também foi evidente desistência de fonte de arrecadação de capital no transporte de cargas para o governo federal, que se esmera em buscar dinheiro em impostos sobre renda e serviços com os quais pouco ou nada contribui, tornando-se sócio parasitário do empreendedorismo de empresários e profissionais autônomos. 
Em minha opinião, a privatização da RFFSA foi e continua sendo um abandono da possibilidade de prosperidade no futuro do Brasil.

Estação ferroviária Diretor Pestana (Porto Alegre- RS), da RFFSA, na década de 1970

Histórico da Rede Ferroviária Federal

A Rede Ferroviária Federal S.A. era uma sociedade de economia mista, integrante da Administração Indireta do Governo Federal, vinculada funcionalmente ao Ministério dos Transportes. Criada pela consolidação de 18 ferrovias regionais existentes em território nacional em 1957, tinha como objetivo principal promover e gerir os interesses da União no setor de transportes ferroviários. Durante sua existência, atendeu a 19 unidades da Federação, em quatro das cinco grandes regiões do País, operando uma malha que, em 1996, compreendia cerca de 22 mil quilômetros de linhas (73% do total nacional).

Em 1992, a RFFSA foi incluída no Programa Nacional de Desestatização, promovido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) que recomendou a transferência para o setor privado dos serviços de transporte ferroviário. Essa transferência foi efetivada no período de 1996 a 1998, segmentando o sistema ferroviário em seis malhas regionais, com concessão pela União por 30 anos, mediante licitação, e o arrendamento por mais 30 anos, dos ativos operacionais da rede aos concessionários.

O processo de liquidação da RFFSA  em 17 de dezembro de 1999 – implicou na realização dos ativos não operacionais e no pagamento de passivos. Os ativos operacionais (locomotivas, vagões, infra-estrutura e outros bens vinculados à operação ferroviária) foram arrendados às concessionárias operadoras das ferrovias (Companhia Ferroviária do Nordeste; Ferrovia Centro Atlântica; MRS Logística S.A; Ferrovia Bandeirantes; Ferrovia Novoeste S.A.; América Latina e Logística e Ferrovia Teresa Cristina S.A.), competindo à RFFSA a fiscalização dos ativos arrendados.

Fonte: 
RFFSA.Gov
https://www.rffsa.gov.br/principal/historico.htm 

Composição ferroviária da RFFSA (1993) em Cruzeiro (SP)

A negligência do governo diante da iniciativa privada

A Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) falhou repetidamente em seu papel de cobrança das obrigações contratuais das concessionárias. Os contratos de concessão e arrendamento afirmam que todos os bens arrendados (linhas, estações e material rodante) devem ser devolvidos ao final do período de concessão no mesmo estado em que se encontravam no começo.
Esta cláusula, apesar de sua clareza, tem sido ignorada impunemente nestes anos de privatização. Durante esse tempo, vários trechos ferroviários passaram a ser não mais rentáveis e foram abandonados. O contrato prevê que, em tais casos, a concessionária teria que devolver os trechos e seus materiais para o governo federal. Essa devolução formal nem sempre ocorre, o que resultou em uma considerável parte do patrimônio ferroviário – junto com o que já tinha sido deixado para fora dos contratos de concessão – abandonado, desabando, enferrujando e sendo vandalizado em muitos lugares pelo Brasil. A ANTT não conseguiu evitar o desastre.

Após vinte anos de ferrovias privatizadas, os consórcios iniciais mudaram suas composições e participações adequando-se à globalização dos capitais e à integração das redes de negócios. Antes as mineradoras eram clientes das ferrovias, agora são sócias em grandes corporações que incluem os mais diversos setores da atividade produtiva, incluindo bancos e empresas de comunicações, grupos econômicos com grande poder de pressão econômica e políticaO interesse dessas organizações financeiras pela ferrovia é setorial, com minério e soja à frente. O interesse capitalista pelos demais negócios ferroviários é quase irrelevante. As operadoras ferroviárias não se interessam por transporte de passageiros ou turístico, nem ajudam as associações ferroviaristas interessadas em tais projetos, negando-lhes o direito de passagem pelas vias férreas que administram. 

Mapa das ferrovias no Brasil

A longa agonia da RFFSA

O fim da RFFSA é uma história de erros e absurdos: com pendências que se espalham pelo Judiciário e por pelo menos seis órgãos da União, a empresa sequer teve seu inventário concluído desde sua privatização. O inacreditável da situação é que o governo federal, na pressa de arrecadar dinheiro nas concessões e se livrar da responsabilidade de gestão da malha ferroviária brasileira, leiloou a administração de um patrimônio que até hoje não se sabe o tamanho e valor! Obviamente não terá como cobrar das empresas privadas a devolução dos bens ferroviários que pertenciam ao poder público, uma vez que não sabe com exatidão o que foi emprestado. Absurdo de irresponsabilidade e incompetência por parte de políticos e gestores públicos brasileiros.

Mesmo depois de quase dez anos de sua extinção, a RFFSA ainda tem à disposição 250 funcionários que trabalham diretamente nos levantamentos que envolvem a estatal. Oficialmente, eles pertencem a um quadro especial da Valec, empresa que foi mantida pela União para ficar à frente de obras no setor ferroviário. A chefia da inventariança justifica o longo prazo pelo monumental volume de bens envolvidos: 105,8 mil imóveis; 37 mil itens em estoque (almoxarifados); 393 locomotivas; 4.353 vagões e 38.300 equipamentos.

A malha concessionada é composta por ferrovias com bom potencial de desempenho econômico. Tudo o que não foi considerado "operacional" não foi incluído nos contratos de concessão. Dessa forma, trechos de linha desativados, todo o patrimônio arquitetônico, todo o material rodante desativado, toda a memória documental e bibliográfica ficou sem projeto, sem destino e sem proteção.
Consequentemente iniciou-se um processo de deterioração de estações, equipamentos, locomotivas, carros e vagões, degradando o patrimônio ferroviário histórico, arquitetônico, documental, iconográfico e técnico. A situação escandalosa motivou o aparecimento de organizações civis, em diversos pontos do Brasil, voltadas para a preservação do patrimônio ferroviário.

As associações preservacionistas promovem um processo de proteção e valorização da memória ferroviária nacional. No entanto, essa ação é insuficiente para proteger a grande malha ferroviária desativada espalhada por várias regiões do país. O imenso patrimônio arquivístico, documental e bibliográfico da RFFSA permanece oculto em gavetas, armários e prateleiras, ou pior, jogado no chão como lixo. Estima-se que grande parte desse patrimônio já está perdido. 

RFFSA - Abandono do futuro do Brasil
Fontes de referência:

Wikipédia
Rede Ferroviária Federal
https://pt.wikipedia.org/wiki/Rede_Ferrovi%C3%A1ria_Federal 


O Globo
Estatal dos trens teima em não parar
https://oglobo.globo.com/brasil/estatal-dos-trens-teima-em-nao-parar-18673831 

Biblioo
Como a privatização corrompe a memória da Rede Ferroviária Federal
http://biblioo.info/memoria-da-rede-ferroviaria-federal 


quinta-feira, 7 de março de 2019

7º aniversário

Sétimo ano do HistóriaS

Blog HistóriaS
Imagem: Sylvio Mário Bazote

Hoje o blog completa seu sétimo ano de existência. Agradeço o interesse e parceria dos amigos e visitantes ocasionais ao longo do tempo. Foram mais de 1.024.000 visitas até agora.

No 2º semestre de 2018 foi perceptível uma queda no número de visitantes deste blog, fato este acentuado a partir de setembro, com a profusão de notícias falsas durante as eleições presidenciais.
A credibilidade das informações contidas num blog sempre foi questionável, pois atende aos interesses e percepções de seu(s) criador(es), mas ainda o considero uma ferramenta útil e simpática na transmissão de ideias e contato entre pessoas. Na segunda década do século 21, um dos grandes desafios é definir a qualidade das informações diante da quantidade destas. Perante a inquestionável queda no número de visitas aqui e o abandono e encerramento de alguns blogs que venho acompanhando, parece-me que no Brasil a recente imensa quantidade de fake news foi a pá de cal nesta forma digital de cultura e comunicação, gratuita e de fácil criação. O futuro testemunhará a revalorização ou extinção dos blogs! 

Não basta lançar boas sementes, temos que dedicar esforço e atenção no acompanhamento do crescimento daquilo que plantamos para termos boas colheitas. Estou satisfeito com os frutos obtidos até o momento, apesar das necessárias adaptações na quantidade e qualidade das publicações por conta da falta de tempo para aprofundar pesquisas. As postagens, inicialmente planejadas como semanais, tornaram-se quinzenais. 
E vamos que vamos...


Imagem: tannerfriedman.com

O link abaixo é do álbum no Picasa que tem uma coletânea das imagens que considero representar a essência dos assuntos e ideias do HistóriaS.