Tornar-se andarilho
Autor: Iacyr Anderson Freitas
Do modo como a coisa se deu, sua intricada tessitura, tinha ele agora pouco tino. Parara o carro num restaurante da serra e, enquanto a família terminava de almoçar, resolvera sair para apreciar a paisagem e tomar uma brisa mais fresca na varanda. Uma varanda muito ampla, que circundava um salão em estilo colonial, com dotes de mirante. Lembrava-se também do ar difícil daquele começo de tarde, da sua titubeante luminosidade, do silêncio que a tudo cingia e, naquele momento, como um comboio alucinado dentro do seu peito de homem, tão fortemente ecoava.
Então olhou, através do vidro embaçado, a família que ainda não se levantara da mesa. Naquele instante, como num passe de mágica, ele não mais a reconhecia. Vislumbrou a imagem de sua avó. Essa que nada perguntava, que parecia trazer sempre um catálogo de respostas prontas dentro do vestido. Viu o filho que não deixava de lhe perguntar sobre tudo, como se o tempo, os relógios, o próprio ato de viver fosse explicável. Como se fosse possível a algum vivente visitar cada um dos cômodos de sua própria morte. Viu a filha mais velha, que tanto se parecia com ele, que tanto a ele se agarrava para tentar compreender o que jamais teria resposta. E percebeu que esses rebentos deveriam crescer para melhor trair a espécie. Tal qual ele fizera. Para isso o corpo de cada um se preparava, os dentes, as unhas, o feitio ainda desconjuntado do braço.
Fitou o vulto distante de sua mulher. Sua distância de mil anos. Vulto que decidira a sós, em alguma hora perdida, que não deveria mais caminhar sem a foto 3x4 do marido dentro da bolsa. Vulto que se apoiava nele para enfrentar os filhos, para respirar além dos limites do pequeno apartamento em que viviam. Para existir, ostentando a custo uma insuportável dignidade. Fitou contra a vidraça o vulto dessa família que ele não pedira e que, em verdade, pouco conhecia.
Mas nada parecia girar sob sua esfera de decisão. Tudo estava ali, a postos desde o princípio, qual uma tatuagem amanhecida em seu ombro. Ele não escolhera nem mesmo o modo rasteiro de dizer “boa tarde” ou “como tem passado?” ao síndico do prédio ou aos demais funcionários da repartição. Não buscara salvar do incêndio de seus dias um prazer ao menos. Pouco cultivara as horas que lhe doíam no pulso. As posses tomaram assento em seu sangue e pesavam-lhe, naquele instante, feito pedra no estômago.
Foi quando, deslocando os olhos da vidraça, filtrou a paisagem. E contornou a varanda, em direção a uma das margens da estrada. Pelo caminho, seguiu deixando um rol de entulhos que, como tudo em sua vida, aos poucos se fixara dolorosamente em seu corpo. Objetos criados às sua revelia e que também à revelia ele carregava, com cuidado, para destinos ignorados. Assim, largou os molhos de chaves, a pequena bolsa de moedas, o cordão de ouro, o talão de cheques e a velha carteira.
Viu à frente uma trilha que escorregava pela encosta, afundando-se na mata fechada. Desceu sem pressa. Agora ele podia escolher. Esta era a sua mais íntima grandeza. Um pouco antes do primeiro desvio, lembrou-se também de afrouxar os sapatos e jogar fora os papéis que, nos bolsos, como num último esforço, ainda insistiam inutilmente em chamá-lo pelo nome.
Texto adaptado do livro de contos Trinca dos traídos de Iacyr Anderson Freitas.
Editora Nankin Editorial, São Paulo, 2003.
É, Sylvio. Como dizia aquela pessoa (o Pessoa): "Para viajar, basta existir!"
ResponderExcluirNão basta vontade para mudar a vida. É necessário coragem para se lançar no desconhecido.
ResponderExcluirQue belo texto, heim, Sylvio?
ResponderExcluirChamou-me a atenção o fato de a personagem agora poder "escolher"... Já desejei tanto andarilhar pelo mundo! Mas nunca dependeu apenas de mim. Hoje, que poderia escolher, por razõesz inúmeras, lamentavelmente, escolho ficar.
Aos poucos lerei os artigos que me recomendou...
Abraço!
Jussara
A vontade e a possibilidade têm de estar juntas.
ResponderExcluirNão sei se já ouviu a frase "muitos querem mas não podem, muitos podem mas não querem"...
Tenho vontade de passar um ano da vida com mochila nas costas, andando pelos caminhos da vida, aproveitando o que cada trecho tem a oferecer de bom e de ruim. Até hoje não consegui ter dinheiro suficiente para fazer isso com o mínimo de conforto (que sei será pequeno por conta do clima, cansaço, alguns fatores previsíveis e outros imprevisíveis), mas estou seriamente desconfiado de que, quanto mais o tempo passar, menos disposição e coragem terei para realizar este antigo desejo.
Abraço, Jussara.