sábado, 29 de fevereiro de 2020

Misericórdia divina



Como vivem as pessoas

No sobrado em que funcionou, há tempos, um departamento do Ministério da Agricultura, situado atrás da igreja de São Gonçalo Garcia, residia outrora um opulento capitalista, de nome Rogério, casado com uma senhora cuja perversidade era o terror da mísera escravaria às suas ordens.
O velho jipe largou o asfalto e pegou a estrada de terra. Tudo correndo normal, com hora e meia entravam em Santa Maria. Os dois casais eram estrangeiros e iam apreciando a paisagem: região montanhosa, terra fraca, campo ralo e cerrado. De vez em quando uma fazenda com capineiras em volta, barracão quase afogado no capim verde. Aí o gado era melhor, holandês preto e branco ou vermelho e branco. Mas, no geral, eram vacas magras e compridas, orelhas grandes, lembrando a origem zebuada já meio perdida.
Passaram por três mulheres que balançavam as cadeiras e equilibravam na cabeça um feixe de lenha. Um bando de anum-preto cruzou barulhento na frente do jipe. Um gavião carrapateiro voou para seu ninho. Estava quase anoitecendo.
Avistada de longe, Serra do Cristal parecia um presépio. Lá teriam de abastecer. Daí a pouco estavam subindo a rua comprida, que chegava na Praça da Matriz. Deram várias voltas sem encontrar uma bomba de gasolina. O menino sentado no passeio informou a casa, esquina de baixo, onde podiam quebrar o galho. Foram até lá.
Um rapazinho os atendeu na porta, meio fascinado com o sotaque. Enquanto o tanque enchia, os homens quiseram saber sobre o fubá e as coisas que poderiam ser preparadas com ele. O menino da gasolina pediu ajuda ao patrão. Muito calmo ele explicou como é que se fazia angu, farinha, broa comum e de fubá de canjica, sopa, mingau... A dona de casa convidou as duas mulheres para entrar, descansar um pouco, tomar um cafezinho.
– Aqui não tem indústria – disse uma delas.
– Tem não. 
– O comércio também não é muito forte.
– Comerciozim de lugar pequeno. Dá pra ir vivendo apertado.
– No caminho não vimos nenhuma fazenda grande, a terra parece fraca.
– É. Terra ruim. Nenhum fazendeiro forte.
– Em compensação não tem mendigo na rua.
– Tem mesmo não. Todo mundo é mais ou menos remediado, nem muito rico nem muito pobre.
– A gente viu o povo na porta das casas, crianças brincando na rua. Gente bem vestida. Roupa simples, mas limpa e de bom gosto. Pareciam bem alimentados e com saúde. Mais importante, tinham um jeito feliz.
– No comum, tirando alguma doença ou morte na família, o povo é feliz. Ou conformado.
– Mas, afinal, de que é que vocês vivem?
Apanhada de surpresa, ela pensou um pouco antes de responder:
– Ah, dona, acho que a gente vive é da misericórdia de Deus.

Texto adaptado do livro “Casos de Minas”, de Olavo Romano.
Págs. 11 e 12.
Edição: 1982

Livro - Casos de Minas

A memória de Minas Gerais recuperada em histórias e "causos" populares. Textos fluentes e com humor. O autor vai no fundo de sua memória e de lá resgata certas coisas que ele gostaria que não morressem: um som particular, um cheiro impregnado, bichos, gentes, situações. Ele não cai na arapuca das descrições, narra apenas. O estilo é limpo, sem maquiagem, e encaixa perfeitamente com as histórias. A sabedoria, a malandragem, a essência do homem de interior – está tudo aqui, inteiro e intacto. E sua linguagem é respeitada, sem deformações gráficas.

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