sábado, 13 de abril de 2019

Paixão devoradora


O segredo

No sobrado em que funcionou, há tempos, um departamento do Ministério da Agricultura, situado atrás da igreja de São Gonçalo Garcia, residia outrora um opulento capitalista, de nome Rogério, casado com uma senhora cuja perversidade era o terror da mísera escravaria às suas ordens.
Entre os escravos havia uma jovem mulata chamada Julieta, cuja beleza e juventude alvoroçaram, logo que chegou, os sentidos do senhor, homem forte, másculo e ainda relativamente moço.
A maneira branda por que, desde o primeiro dia, começou a tratar a nova escrava, despertou incontinente os ciúmes da esposa, dona Jacinta, que exigiu o mais depressa possível a venda da rapariga, com o que não concordou Rogério, visto as razões secretas que tinha para conservá-la em seu poder.
Suspeitando do esposo, pôs-se dona Jacinta a espioná-lo, habilmente, e foi sem grande dificuldade que ficou sabendo que Julieta era algo mais do que simples escrava...
Não deu a menor demonstração do que acabava de verificar. Tornou-se até mais carinhosa para com o marido, a quem, dali por diante, deixou de falar na venda de Julieta.
Um mês depois, Rogério fazia anos. A mulher quis, ela própria, fazer o jantar. Aliás, não foi um jantar apenas melhorado que dona Jacinta apresentou no dia, mas um verdadeiro banquete. Era grande a variedade de pratos que enchiam a mesa, mas, entre todos, aquele de que mais gostou Rogério foi um de picadinho de coração, muito de seu agrado e de que só ele comeu e repetiu mais de uma vez, deliciado.
Findo o repasto, horas depois, precisou de Julieta. Chamou-a em voz alta. Não teve resposta. Estaria no quintal? Gritou da varanda, com mais força. A rapariga não respondia. Mandou que a procurassem. Ninguém a encontrou. Desconfiado de que a mulher a tivesse vendido à sua revelia, interpelou-a ardilosamente:
– Será que a mandaste a alguma parte, Jacinta?
– A Julieta?
– Sim, a Julieta! – exclamou Rogério, já de mau humor.
– Bem, o coração tu o jantaste... O resto não sei... pergunta ao Bento...
Tudo fora feito em segredo: o assassínio, a abertura do peito, a retirada do coração, com a desgraçada ainda viva, fortemente amarrada e com a boca entupida de pano, para que não se ouvissem seus gritos. Em seguida, o enterro ali mesmo, onde se consumara o hediondo crime.
Os escravos sabiam que Julieta tinha ido, durante o dia, com a senhora e o Bento - escravo mau, que aplicava os castigos - para uma capoeira próxima da cisterna. Depois disso, nunca mais a viram. Curiosos, perguntaram ao odiado companheiro e algoz o que tinham ido fazer os três no lugar de onde não mais voltara a bonita mulatinha.
– Ali há um segredo. Não posso dizer... Pagaria com a vida...
E o local da tragédia ficou sendo, para os escravos, O Segredo – denominação esta que, mais tarde, se estendeu aos arredores e até hoje se conserva.

◄ ♦ ►

Texto adaptado do livro “Contam que...”, de Lincoln de Souza.
Págs. 45 a 50.

Livro : Contam que...
( Lincoln de Souza )
Toda cidade antiga tem suas lendas e São João del-Rei (MG) não foge desta regra. Estas lendas foram transmitas por tradição oral ao longo de gerações até serem reunidas num livro para registrá-las. Lincoln de Souza escreveu em 1920 o livro "Contam que..." com as 12 lendas mais famosas da cidade.
Editado e relançado diversas vezes, este livro foi uma das inspirações para a realização do projeto teatral turístico "Lendas São Joanenses", que encena alguns destes "causos" pelas ruas da cidade histórica.
São histórias de mistério e horror, mas nada muito diferente daquelas que costumávamos ouvir nas rodas entre amigos ou de pessoas mais velhas, quando fazíamos alguma travessura...

◄ ♦ ►

Para ler o livro na íntegra, acesse:

Um comentário: