sábado, 12 de janeiro de 2019

Amaldiçoados


Mula sem cabeça
Mulas sem cabeça e lobisomens
Autora: Angela Xavier

A época mais propícia a aparições de mulas sem cabeça e lobisomens é na Quaresma. Parece que muito coisa ruim fica solta neste período.
É do conhecimento geral que, se uma mulher se relacionar com um padre, vai virar mula sem cabeça na quaresma. A criatura sai pelas ruas da cidade, soltando fogo pelo pescoço, e precisa bater o casco no adro de sete paróquias em cada noite para voltar à forma humana, por isso geralmente está correndo. Quando o sol surge, a transformação desaparece se as igrejas foram visitadas.
O Sr. Tito jura que uma vizinha sua vira mula. Contou que, numa noite, a irmã dessa mulher foi ao seu quarto e viu que, deitada na cama, estava a cabeça de sua irmã, mas sem o corpo. Tem um detalhe que denúncia estas mulheres: se ela aparecer mancando no dia seguinte, isso é sinal de que ela virou mula.
Tem um jeito para se apanhar uma mula sem cabeça: deve-se deixar um terço onde faltam algumas contas no local onde ela vai passar. Quando ela vê um terço faltando contas, fica aflita com a imperfeição num instrumento de salvação da alma e interrompe com sua correria para ver se encontra as contas que faltam. Esse é o momento de capturá-la!
Para evitar que a amante se torne uma mula sem cabeça, o padre precisa amaldiçoá-la no altar sete vezes antes de rezar uma missa.



Já o lobisomem tem sua origem controvertida. Alguns afirmam que o sétimo filho homem do sétimo filho ou filha de uma família se torna lobisomem nas noites de lua cheia. Se a criança nascer mulher, escapa da maldição. Outros afirmam que esta é a sina de homem que bate na própria mãe. Há também quem afirme que este é o destino de homens que cometeram maldades durante a vida e foram amaldiçoados por suas vítimas. Depois da morte, seus espíritos ficam aprisionados num corpo que nunca se desmancha por completo, saindo deste apenas nas noites de lua cheia como lobisomens e para este retornando ao final de cada noite. Este seria o destino de alguns senhores e feitores que martirizavam os escravos.
Os lobisomens surgem depois da meia noite e, raivosos, atacam quem cruze seu caminho até que o galo cante pela primeira vez, quando normalmente se recolhem, aguardando o surgimento da luz do sol, que acaba com sua transformação e eles podem dormir e descansar. Costumam amanhecer no dia seguinte arranhados, descabelados e com pedaços de tecidos ou outras coisas entre os dentes. Quando está na forma humana, o lobisomem tem pelos no corpo e dentes mais pontiagudos que o habitual. Gosta de comer carvão e fralda de criança, que geralmente arranca do varal.
Se uma pessoa acredita que está prestes a ser atacada por um lobisomem, deve parar, fechar os olhos, a boca e as mãos escondendo as unhas, porque o lobisomem só enxerga estas partes do corpo e os movimentos, tendo uma audição de ser humano e não tendo olfato, para sorte de suas possíveis vítimas.
Um senhor que conheci me relatou que possuía uma casa com um quintal muito grande, quase do tamanho de um quarteirão, e procurava alguém para capiná-lo. Indicaram para ele uma pessoa, de um distrito próximo a Ouro Preto, que era bom de serviço. O senhor entrou em contato com ele e o contratou para o serviço.
No início da manhã o capinador chegou. O homem tinha uma característica marcante: um olho era azul e o outro era verde. O capinador era um senhor que passava dos cinquenta anos, magro e alto, de poucas palavras e olhar esquivo. A esposa do dono da casa estava na cozinha, fazendo o café, quando o capinador chegou à porta. Ela levou um susto ao vê-lo todo arranhado. Ele explicou a ela que tinha sido atacado na noite anterior por um bicho bravo, que não tinha conseguido identificar, mas do qual conseguiu fugir ao correr e se trancar dentro da sua casa. O senhor que o contratara para a capina entrou na cozinha durante a explicação e, desconfiado, resolveu levar de volta, em seu automóvel, o capinador para sua casa, inventando uma desculpa que tinha surgido um compromisso imprevisto para o casal e a capina teria que ser realizada outro dia. Depois e deixar o estranho homem em frente a sua casa no lugarejo onde vivia, parou num botequim que lá havia e, conversa vai, conversa vem, soube que o capinador virava lobisomem e que todos ali evitavam contato com ele. Tempos depois, quando o capinador entrou em contato, o senhor mentiu que um parente tinha se oferecido para capinar o quintal gratuitamente e que, quando precisasse, ele seria procurado.   
Dizem que o seu Raimundo, da rua do hospital, também virava lobisomem. Ele pulava a janela e saía pelas ruas, arrumando confusão com os cães do bairro e os bêbados dos botecos próximos. Só voltava quando estava amanhecendo. No dia seguinte, quando ele ria, tinha retalhos de roupa entre os dentes. Morreu novo ainda.

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Texto adaptado do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier.
Págs. 238 a 240.
Edição do Autor; Ouro Preto (MG); 2009 (2ª edição).

Obs.: Esta postagem foi realizada mediante prévia autorização da autora.

Para mais "causos" e contos de Angela Xavier, acesse o blog dela:
Compartilhando Histórias
http://www.angelaleitexavier.blogspot.com.br 

Livro : Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto

O livro reúne mais de 70 histórias, ambientadas do século XVIII até início do XX, coletadas junto a moradores ou em livros sobre a cidade. Olavo Romano, responsável pelo prefácio, afirma que "Ouro Preto era cheia de fantasmas, uma cidade mal iluminada, repleta de capelas e cemitérios, onde ninguém saia de casa depois das 21 horas. Trata-se de um livro que narra a História de Ouro Preto de uma forma agradável, à maneira dos contadores de histórias, e está entremeada de lendas e causos. Começa chamando a atenção do leitor para a necessidade de se preservar aquilo que faz parte da nossa memória e relata a descoberta do ouro, os conflitos que surgiram no início e as revoltas". 
A ênfase do livro é dada às histórias dentro da História, nas curiosidades que os livros de História não relatam, na sociedade que se formou ao redor das minas de ouro com suas crenças, seus valores e sua religiosidade. Relatos de grandes festas, de muitos casos assombrados e tesouros escondidos. A ilustração, com desenhos em bico de pena, é do artista plástico ouro-pretano José Efigênio Pinto Coelho.

2 comentários:

  1. Adorei as histórias, Sylvio, mas me peguei com pena do capinador de um olho verde e outro azul por ter perdido o serviço, rs.
    Há muitos anos fiz um módulo de uma pós-graduação em Literatura Infantil com uma Ângela Leite, de Ouro Preto, escritora de livros infantis... seria a mesma? Abraço!

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    1. Sim, ela desenvolve esta atividade!
      Eu a conheci na Casa dos Contos (em Ouro Preto) contando histórias para crianças de uma escola municipal.

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