Certo & Errado
sábado, 23 de janeiro de 2021
domingo, 3 de janeiro de 2021
Companheirismo
Despedida
Frei Paulo tinha ocupado cargo importante no governo, depois enfarou daquilo. Foi para o interior, viver do trabalho do seu corpo, conviver com o povo da roça.
Comprou uma chácara, começou formando horta. Trabalhava de sol a sol. Os moradores locais ficaram arredios no princípio, depois foram chegando aos poucos. Um, mais atirado, perguntou:
– O senhor é padre mesmo?
– Sou, meu filho.
– Praticante?
– Sim! Por quê?
– É que ninguém viu o senhor celebrando, batizando, fazendo as coisas que padre faz.
– Vou primeiro arrumar a horta, ganhar algum dinheiro. Depois, com o tempo, faço uma capela, ajeito as coisas.
– Esse trabalho não é pro senhor, não. É homem da cidade, vai se acabar. Isso é coisa pra gente que já tá calejada.
– Se vocês dão conta, eu também dou. Vou engrossando as mãos, o corpo acostuma.
A horta viçou e Frei Paulo arranjou um sócio com uma Kombi para vender as verduras. Com o dinheiro foi construindo uma casa simples e ampla, onde passou a batizar, fazendo “as coisas que padre faz”.
Tinha pena das doenças daquele povo simples. Começou o que ele mesmo chamava de “exercício ilegal da medicina”. Ouvia as queixas, ia de vez em quando à capital, se instruía com médicos amigos sobre os casos. Conseguindo amostras grátis foi formando uma farmaciazinha. Receitava fortificante, dava vermífugo, fazia partos. Os casos de internamento resolvia com uma amiga, irmã da Santa Casa, sempre disposta a ajudá-lo em consideração a antiga amizade. Ganhou a confiança dos moradores locais.
De todo o pessoal, quem mais se afeiçoou ao padre foi o Zico mais a Tiana. Eram já bem velhos, tinham vivido sempre por ali, vidinha simples e remediada. A filha deles, Maria, era surdo-muda, assim meio abobada.
Um dia o padre deu falta da Tiana, nem na janela aparecia mais. Vendo que Zico andava triste, indagou:
– Cadê a Tiana, Zico?
– Anda por casa mesmo, meio aperrengada.
– De cama?
– Quase de contínuo.
– Por que você não me contou? Vou fazer uma visita!
Pouco mais de meia hora depois, sentando na beira da cama da doente, o padre mandou abrir a janela para correr o ar do quarto. Quando o cômodo clareou, pôde ver que Tiana estava um farrapo, com um pano amarrado na cabeça. Para espanto de Zico, Frei Paulo foi logo tirando o pano, naquele modo despachado dele. Era uma chaga só. O cabelo tinha sumido e uma chusma de bichos comendo a carne. O padre levantou e disse que ia à sua casa buscar recursos na sua botica.
Quando voltou, limpou a cabeça de Tiana com algodão e água oxigenada. Mandou coar café, conversaram um par de horar. Ela ficou mais animada.
Daí pra frente fazia os curativos todos os dias na manhã. Aproveitava para uma conversa vadia, terminada com palavras de conforto e incentivo.
Numa de suas idas na cidade, Tiana morreu. Na volta soube da notícia e foi correndo ver o Zico.
– Que coisa, hein Zico?
– Pois é, sô padre. Güentou esperar não. Tanto ela queria conversar mais o senhor... Não calcula como pelejou...
– Pois é. Penou muito?
– Penar ela penou mas foi antes. Na hora não penou quase nada, louvado seja Deus. O senhor precisava ver.
– Como é que foi?
– Uma beleza de despedida! Só mesmo a pobre da Tiana. Carecia ver as coisas que ela falou. Tanto conselho... recomendação...
– Conta homem!
– Ela me chamou na beira da cama. Tava calma. Foi falando com fiapo de voz: – “Escuta, meu velho. Não güento mais não! Minha hora chegou. Tou despedindo. Quero te pedir umas coisas.
– Primeiro, a chacra. Vende não! Povo da cidade paga bem. Aceita não. A chacra é resultado do nosso trabalho. Acaba seu tempo aqui, onde a gente viveu.
– Tá bem!
– A Maria... cuida dela. Deixa ninguém judiar não. Só tem ocê no mundo.
– Preocupa não, Cuido direitinho.
– A horta. Joga água, tira praga. Ela dá saúde sem gastar dinheiro. Maria pode ajudar.
– Tá! A Maria vai ajudar muito.
– As galinhas, mesma coisa. Descuida delas não. Vê se não tão botando no mato. Bicho come ovo e acaba tudo.
– Tem razão. Não vou descuidar.
– O jardim. Pede Maria pra tomar conta. A casa fica com ar alegre. O girassol vai dar flor. Tira semente pro papagaio”.
– Assim ela foi, sô padre. Falando das coisas mais pequena, que a gente pensa que não vale nada. Falou pra dar couve e trocar água dos canarinho, duma pintura na casa de vez em quando para embelezar, essas coisinhas toda. Eu segurando choro e ela falando como se fosse uma conversa boba. Choro só de lembrar.
– É natural, Zico. E aí?
– Aí senti que as força dela tava acabando, fui ficando agoniado, perguntei: – “Tiana, minha velha. Ocê tá falando de tanta coisa... e eu?”
– E ela?
– Olhou pra mim dum jeito tão bonito, e só disse assim: – “Ocê meu velho, fica com Deus”. Alisou minha mão, deu um sorriso e encostou a cabeça no travesseiro. Parecia coisa que tava dormindo.
Texto adaptado do livro “Casos de Minas”, de Olavo Romano.
Comprou uma chácara, começou formando horta. Trabalhava de sol a sol. Os moradores locais ficaram arredios no princípio, depois foram chegando aos poucos. Um, mais atirado, perguntou:
– O senhor é padre mesmo?
– Sou, meu filho.
– Praticante?
– Sim! Por quê?
– É que ninguém viu o senhor celebrando, batizando, fazendo as coisas que padre faz.
– Vou primeiro arrumar a horta, ganhar algum dinheiro. Depois, com o tempo, faço uma capela, ajeito as coisas.
– Esse trabalho não é pro senhor, não. É homem da cidade, vai se acabar. Isso é coisa pra gente que já tá calejada.
– Se vocês dão conta, eu também dou. Vou engrossando as mãos, o corpo acostuma.
A horta viçou e Frei Paulo arranjou um sócio com uma Kombi para vender as verduras. Com o dinheiro foi construindo uma casa simples e ampla, onde passou a batizar, fazendo “as coisas que padre faz”.
Tinha pena das doenças daquele povo simples. Começou o que ele mesmo chamava de “exercício ilegal da medicina”. Ouvia as queixas, ia de vez em quando à capital, se instruía com médicos amigos sobre os casos. Conseguindo amostras grátis foi formando uma farmaciazinha. Receitava fortificante, dava vermífugo, fazia partos. Os casos de internamento resolvia com uma amiga, irmã da Santa Casa, sempre disposta a ajudá-lo em consideração a antiga amizade. Ganhou a confiança dos moradores locais.
De todo o pessoal, quem mais se afeiçoou ao padre foi o Zico mais a Tiana. Eram já bem velhos, tinham vivido sempre por ali, vidinha simples e remediada. A filha deles, Maria, era surdo-muda, assim meio abobada.
Um dia o padre deu falta da Tiana, nem na janela aparecia mais. Vendo que Zico andava triste, indagou:
– Cadê a Tiana, Zico?
– Anda por casa mesmo, meio aperrengada.
– De cama?
– Quase de contínuo.
– Por que você não me contou? Vou fazer uma visita!
Pouco mais de meia hora depois, sentando na beira da cama da doente, o padre mandou abrir a janela para correr o ar do quarto. Quando o cômodo clareou, pôde ver que Tiana estava um farrapo, com um pano amarrado na cabeça. Para espanto de Zico, Frei Paulo foi logo tirando o pano, naquele modo despachado dele. Era uma chaga só. O cabelo tinha sumido e uma chusma de bichos comendo a carne. O padre levantou e disse que ia à sua casa buscar recursos na sua botica.
Quando voltou, limpou a cabeça de Tiana com algodão e água oxigenada. Mandou coar café, conversaram um par de horar. Ela ficou mais animada.
Daí pra frente fazia os curativos todos os dias na manhã. Aproveitava para uma conversa vadia, terminada com palavras de conforto e incentivo.
Numa de suas idas na cidade, Tiana morreu. Na volta soube da notícia e foi correndo ver o Zico.
– Que coisa, hein Zico?
– Pois é, sô padre. Güentou esperar não. Tanto ela queria conversar mais o senhor... Não calcula como pelejou...
– Pois é. Penou muito?
– Penar ela penou mas foi antes. Na hora não penou quase nada, louvado seja Deus. O senhor precisava ver.
– Como é que foi?
– Uma beleza de despedida! Só mesmo a pobre da Tiana. Carecia ver as coisas que ela falou. Tanto conselho... recomendação...
– Conta homem!
– Ela me chamou na beira da cama. Tava calma. Foi falando com fiapo de voz: – “Escuta, meu velho. Não güento mais não! Minha hora chegou. Tou despedindo. Quero te pedir umas coisas.
– Primeiro, a chacra. Vende não! Povo da cidade paga bem. Aceita não. A chacra é resultado do nosso trabalho. Acaba seu tempo aqui, onde a gente viveu.
– Tá bem!
– A Maria... cuida dela. Deixa ninguém judiar não. Só tem ocê no mundo.
– Preocupa não, Cuido direitinho.
– A horta. Joga água, tira praga. Ela dá saúde sem gastar dinheiro. Maria pode ajudar.
– Tá! A Maria vai ajudar muito.
– As galinhas, mesma coisa. Descuida delas não. Vê se não tão botando no mato. Bicho come ovo e acaba tudo.
– Tem razão. Não vou descuidar.
– O jardim. Pede Maria pra tomar conta. A casa fica com ar alegre. O girassol vai dar flor. Tira semente pro papagaio”.
– Assim ela foi, sô padre. Falando das coisas mais pequena, que a gente pensa que não vale nada. Falou pra dar couve e trocar água dos canarinho, duma pintura na casa de vez em quando para embelezar, essas coisinhas toda. Eu segurando choro e ela falando como se fosse uma conversa boba. Choro só de lembrar.
– É natural, Zico. E aí?
– Aí senti que as força dela tava acabando, fui ficando agoniado, perguntei: – “Tiana, minha velha. Ocê tá falando de tanta coisa... e eu?”
– E ela?
– Olhou pra mim dum jeito tão bonito, e só disse assim: – “Ocê meu velho, fica com Deus”. Alisou minha mão, deu um sorriso e encostou a cabeça no travesseiro. Parecia coisa que tava dormindo.
Texto adaptado do livro “Casos de Minas”, de Olavo Romano.
Págs. 147 e 152.
Edição: 1982
Livro - Casos de Minas
A memória de Minas Gerais recuperada em histórias e "causos" populares. Textos fluentes e com humor. O autor vai no fundo de sua memória e de lá resgata certas coisas que ele gostaria que não morressem: um som particular, um cheiro impregnado, bichos, gentes, situações. Ele não cai na arapuca das descrições, narra apenas. O estilo é limpo, sem maquiagem, e encaixa perfeitamente com as histórias. A sabedoria, a malandragem, a essência do homem de interior – está tudo aqui, inteiro e intacto. E sua linguagem é respeitada, sem deformações gráficas.
Assinar:
Postagens (Atom)