O retrato
Padre
Ernesto lia com fervor o seu breviário, quando uma senhora de certa idade, em
cuja fisionomia se estampavam bondade e distinção, modestamente trajada, foi
pedir-lhe que confessasse o filho, que se achava doente, guardando o leito.
Ele
não a conhecia, como aliás não conhecia quase ninguém, visto ser de fora e ter
chegado à cidade havia pouco.
Sem
demora, largou o livro, pôs o chapéu na cabeça e saiu. Na rua, ela falou-lhe:
–
O senhor não dirá que foi chamado expressamente para vê-lo. Proceda de maneira que
a sua presença não o impressione. Ele está sofrendo do coração e qualquer abalo
o pode vitimar. Residimos na rua de Santo Antônio, na quarta casa do lado
esquerdo de quem vem do largo do Rosário. Não tem número, mas não haverá
dificuldade em encontrá-la. Eu daqui sigo para Barro, em busca de um remédio e
como, ao meu regresso, já não o encontrarei mais em casa, porque me demoro,
desde já me despeço do senhor e muito de coração lhe agradeço a caridade. Boa
noite.
–
Boa noite. Vá com Deus!
–
Amém.
Padre
Ernesto ia pelo caminho pensando no que devia dizer, a fim de justificar sua
presença e não alarmar o enfermo.
Após
andar cerca de vinte minutos, estava em frente da casa indicada.
Bateu
à porta. Veio atendê-lo uma jovem, toda de luto fechado. Depois de
cumprimentá-la:
–
Posso fazer uma visitinha ao querido doente?
–
Pois não! Faça o favor de entrar. Entrou.
A
beira do leito do rapaz:
–
Estou hoje correndo o bairro, Sr… Como se chama?
–
Alfredo, um seu criado.
–
Agradecido. Mas, como ia dizendo, Sr. Alfredo, estou correndo o bairro, para
travar conhecimento com as minhas ovelhas. Sou novo aqui. O senhor é católico,
já sei…
–
Católico, apostólico, romano.
–
Muito bem. E tem-se confessado regularmente?
–
Tenho, mas este mês…
–
Compreendo: as coisas mundanas o têm absorvido mais que a religião…
E
se, por acaso, morresse de repente, agora, amanhã?! Não sabemos nunca o dia da
nossa partida… E, se tal acontecesse, não iria em pecado? Já pensou nisso, Sr.
Alfredo?
–
Francamente, não pensei… O senhor tem razão.
–
Bem. Já que aqui estou, não quereria aproveitar a ocasião e resgatar essa
falta?
Rapaz
bastante religioso, não relutou: confessou-se. No dia seguinte, foi grande o
espanto de Padre Ernesto quando soube que a ovelha da véspera amanhecera morta,
com espanto também do próprio médico, visto que o estado do doente não parecia
grave.
A
família, que simpatizara com o confessor de Alfredo, chamou-o para a
encomendação do corpo, em casa.
Padre
Ernesto foi. Após o oficio fúnebre, os seus olhos deram com a ampliação
fotográfica de um busto de mulher, na parede da sala de visitas, cercado de
flores.
Reconhecendo
nela a mãe de Alfredo, que tão providencialmente o fora chamar para confessá-lo
na véspera de sua morte, falou a uma das moças da casa:
–
É verdade, a senhora sua mãe… Imagino-lhe a angústia! Desejaria confortá-la no
transe que atravessa. Posso vê-la?
–
Ah! Impossível! Nossa pobre mãe… Padre Ernesto franziu a testa, sem
compreender.
–
Impossível? E fixou novamente o olhar no retrato da senhora que o procurara.
–
Sim, infelizmente, disse a moça. E numa infinita tristeza, com os olhos
inundados de lágrimas:
– Faz hoje, precisamente,
três meses que ela morreu…
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Págs. 63 a 68.
( Lincoln de Souza )
Lendas de São João del-Rei
Toda cidade antiga tem suas lendas e São João del-Rei (MG) não foge desta regra. Estas lendas foram transmitas por tradição oral ao longo de gerações até serem reunidas num livro para registrá-las. Lincoln de Souza escreveu em 1920 o livro "Contam que..." com as 12 lendas mais famosas da cidade.
Editado e relançado diversas vezes, este livro foi uma das inspirações para a realização do projeto teatral turístico "Lendas São Joanenses", que encena alguns destes "causos" pelas ruas da cidade histórica.
São histórias de mistério e horror, mas nada muito diferente daquelas que costumávamos ouvir nas rodas entre amigos ou de pessoas mais velhas, quando fazíamos alguma travessura...
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Para ler o livro na íntegra, acesse:
São João del-Rei Transparente
https://saojoaodelreitransparente.com.br/works/view/310
São João del-Rei On-Line
Lendas São-Joanenses