Galanga Muzinga era rei de
uma tribo no Congo. Seu reino enfrentava sério problema: os portugueses
aprisionavam tribos inteiras e as levavam para o trabalho escravo em terras
distantes. O próprio rei, sua família, a corte e os súditos foram aprisionados
e levados para embarque rumo a destino desconhecido.
O rei de Portugal não
permitia a entrada de pagãos na América. O papa havia decretado que os negros
também tinham alma. Um padre jogou um balde d’água com duas colheres de sal
sobre 191 prisioneiros, batizando todos os homens com o nome de Francisco e as
mulheres se chamariam Maria.
Marcados a ferro em brasa com
as iniciais do traficante, os passageiros, sentindo-se abandonados por seu deus
Zambi Apungo, foram conduzidos ao veleiro Madalena, que os levaria ao Brasil.
Ali estavam, acorrentados e
amontoados, no porão do navio, o rei Galanga, seu filho Zinga, a rainha Djalô e
sua filha Itúlu, também toda a corte e alguns antigos súditos. Todos agora
igualados no desamparo da escravidão.
Em alto mar, o veleiro
encontrou águas revoltosas e fez água. Era preciso aliviar o peso jogando parte
da carga ao mar ou naufragariam todos. Esse foi o destino das mulheres, sem
nenhuma exceção. Eram mercadorias de menor valor. Os homens não conseguiram
impedir. As correntes e chicotes eram superiores à força de suas vontades e
desespero.
Chegou ao porto do Rio de
Janeiro a carga mais valorizada de 112 escravos homens. O cheiro do veleiro
estava detestável! Os negros foram levados, acorrentados uns aos outros, ao mar
para serem lavados e tirar a sujeira acumulada durante a viagem. Negros forros,
trabalhando de aluguel, cuidaram da limpeza dos prisioneiros. Após o banho de
mar, passaram nos escravos buchas molhadas com azeite carrapateiro, depois
trataram as feridas feitas pelos chicotes e argolas de couro cru no pescoço. A
arte final foi feita com o azeite fino, que dava brilho à pele negra,
valorizando a mercadoria.
Começaram a chegar os
interessados em comprar negros para os vários trabalhos na próspera colônia
brasileira. Um desses era o major Augusto, vindo de Vila Rica para adquirir uma
nova leva de escravos para as suas minas. Depois de percorrer todo o mercado,
seu capataz separou três fileiras de dez negros cada, entre os quais estavam
Galanga, seu filho e parte de sua corte.
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Foi uma longa e cansativa
viagem a pé, através de campos e montanhas, do Rio de Janeiro para Vila Rica.
Os pés descalços e os punhos amarrados se feriam e chegavam a sangrar.
Na senzala da casa do major
Augusto os prisioneiros se adaptavam à nova realidade.
– Onde estamos? E esse frio
que dói os ossos? Que será de nossas vidas? Perguntavam-se.
Galanga, com sua postura de
rei, procurava acalmá-los:
– Não perdemos a vida. Agora
é preciso paciência. A luta só acaba com a morte. Cada dia de vida é o que nos
resta.
Para o major Augusto o novo
grupo era sua esperança de encontrar ouro e saldar suas dívidas, que aumentavam
com o tempo.
Era o primeiro dia de
trabalho de Galanga – que tempos depois passaria a ser chamado pelos brancos de
Chico Rei – na Mina da Encardideira, situada na área urbana de Vila Rica. Era
um enorme buraco, cavado na montanha, onde os negros entravam e, cavando bem
fundo, enchiam um calumbé de pizzara. Depois o traziam para fora onde, na
bateia, apuravam o ouro existente.
A turma onde estava Chico se
jogou ao trabalho com a vontade de quem deseja cavar uma nova vida, um dia de
cada vez. O major sorriu feliz. Nunca tinha apurado tanto ouro. Chico enchia um
calumbé atrás do outro, sem se permitir cansaço, para servir de exemplo de
determinação para seu filho e conhecidos. Para tornar o trabalho menos penoso,
frequentemente cantava músicas em seu idioma, e incentivava a outros que também
fizessem parte de um revezamento diário de cantorias para espantar o cansaço e
a tristeza do silêncio.
Entre os negros Chico
continuava sendo um rei, e o exemplo de sua dignidade e persistência aumentava
a esperança em dias melhores. Nas minas do major, onde Chico motivava seu
grupo, o trabalho aumentava a descoberta do ouro. Tornou-se um escravo
apreciado, não só pelo major, como por outros mineradores que desejavam
comprá-lo.
Certo dia, major Augusto foi
atacado por três escravos angolanos. O major caiu desacordado e os negros,
dando-o por morto, fugiram rapidamente, com receio dos capatazes. O major foi
levado para a Santa Casa da Misericórdia, onde foi tratado de seus ferimentos.
A recuperação foi longa e difícil; ele ficou com os movimentos limitados em um
dos braços e seu espírito nunca mais foi o mesmo.
Chico já falava
suficientemente bem o português e era cada vez mais admirado por todos.
Tornou-se amigo do padre Figueiredo, que propôs ao major a alforria do Chico,
que tinha acumulado o suficiente para comprar sua liberdade. Nas minas, o
escravo tinha a possibilidade de conseguir ouro, escondendo-o ou encontrando-o
em quantias maiores que a estipulada pelo dono, como forma de motivar a
produção.
A contragosto, o major vendeu
a carta de alforria ao Chico. Concedeu-a em parte como forma de reconhecimento
pelo trabalho que o havia enriquecido, mas também porque se não o libertasse,
perderia a motivação daquele singular grupo de escravos que, buscando suas
liberdades, aumentavam a prosperidade do major e sua família.
Chico Rei era, agora, um
homem novamente livre. Empregou-se na Mina do Pitangui, que ofereceu pelo
aluguel de seu trabalho valor um pouco acima dos demais contratados. Aos
domingos, o dono da mina permitia que os melhores trabalhadores batessem por
conta própria, nos locais que julgassem mais prósperos, dividindo o lucro do
dia com o proprietário. No terceiro domingo de trabalho, Chico achou uma enorme
pepita de ouro. Com sua parte do lucro, comprou a liberdade de seu filho com o
abatido major, que ao fim de sua vida lhe dedicava crescente admiração. Chico
tinha então trinta e sete anos.
♦
Um dia, resolveu visitar o
major Augusto, que se encontrava agora frequentemente doente. O major propôs
vender-lhe a Mina da Encardideira, que considerava exaurida, mas que com muita
dedicação e um tanto de sorte poderia ainda render um pouco de ouro. Como forma
de gratidão pelos serviços prestados, o major afirmou que Chico poderia lhe
pagar na medida em que encontrasse ouro. O preço combinado pela mina foi
pequeno e a escritura foi passada em nome de Chico Rei, como forma de
homenagem.
No dia seguinte ao registro
da escritura, Chico e seu filho Zinga começaram a limpar a mina, que se
encontrava abandonada. Mataram aranhas e escorpiões, tiraram pacientemente o
entulho acumulado e drenaram água de algumas galerias mais profundas. Agora
trabalhavam no que era seu, e conheciam bem aquela mina. Esforçaram-se muito
até que o ouro se mostrasse. Metal de qualidade, 23 quilates. Combinaram manter
segredo e foram enchendo de ouro um grande pote de barro, escondido no fundo da
mina. Com esse ouro compraram a alforria dos trinta e sete membros ainda vivos
de sua tribo do Congo, que passaram a trabalhar com eles. A Mina da
Encardideira tornou-se um pequeno território livre do Congo dentro de Minas
Gerais.
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Dia 6 de janeiro de 1747 foi
um dia de festa para os negros do Congo. Chico e todos os alforriados por ele
compareceram à capela de Nossa Senhora do Rosário para agradecer pela vida que
levavam então, depois de tanta dificuldade. Fizeram uma grande festa dedicada a
Zambi-Apungo, representado no Brasil por Nossa Senhora do Rosário. Foi
combinado que, todos os anos a partir daquele seria comemorada sua liberdade e
dignidade, conquistadas com perseverança e união. Construir uma capela para
Santa Efigênia, a santa negra, passou a ser uma meta para o grupo melhor
comemorar sua prosperidade. Os esforços na mina se redobraram para alforriar
mais negros e construir o templo, que foi erguido no terreno então pouco
valorizado em cima de um morro, após uma íngreme e longa ladeira. Esta ladeira
é hoje conhecida como Ladeira de Santa Efigênia, local pintado e retratado por
muitos, com suas casas pequenas e simples, mas de uma beleza singular.
Pronta a capela em homenagem
à Santa Efigênia, Chico foi coroado rei dentro dela, com autorização do bispo e
do governador, com a presença de grande número de negros alforriados. Chico se
vestiu nos trajes típicos da realeza africana, tendo em sua cabeça uma coroa de
prata enfeitada com ametistas, uma vez que as autoridades não permitiram uma
coroa de ouro, destinada aos “reis de verdade”.
Ao seu lado, sua nova esposa
e agora também rainha, com quem Chico se casou em Vila Rica. Os participantes
desta coroação se vestiram com roupas coloridas, em suas respectivas tradições
africanas, com espelhos e chocalhos nos pés, dando o ritmo da dança ao som de
tambores e rojões que estouravam. Depois da cerimônia, os participantes comeram
e beberam à vontade, tudo por conta de Chico Rei. Essa festa inaugurou o
coroamento dos reis do Congado em Minas Gerais.
O festivo cortejo da dança
africana passou a percorrer as ruas de Vila Rica todos os anos a partir de
então, saindo da Mina da Encardideira e subindo a ladeira em direção à Igreja
de Santa Efigênia. Se apenas subir esta íngreme ladeira já é um feito
considerável, subi-la dançando, cantando e tocando instrumentos, vestindo
pesadas e luxuosas roupas, é algo admirável. Após cerimônia e festa na igreja,
o cortejo se dirigia e terminava sempre na porta da prisão de Vila Rica, onde a
nova rainha de Chico Rei distribuía presentes aos presos.
Era o Reinado do Rosário!
Mesmo após a morte de Chico e sua corte, a tradição se manteve até a década de
1940, quando um bispo achou que aquela comemoração era profana. Aquilo mais
parecia carnaval! E proibiu o congado na diocese de Mariana e região, que
englobava Ouro Preto e outras cidades da região.
Após a morte deste bispo,
esforços foram feitos para resgatar a tradição da Missa Conga e do Congado.
Grupos que visitam Ouro Preto vão à Mina do Chico Rei para reverenciá-lo e à
igreja de Santa Efigênia. Esses são símbolos fortes, perpetuados na memória
popular.
Entrada da Mina do Chico Rei
Interior da Mina do Chico Rei
Igreja de Santa Efigênia no alto da Ladeira de Santa Efigênia