Decidimos a viagem para o início das férias de fim de ano
das crianças, combinei com meus primos o tão esperado reencontro para o mês de
novembro, quando ficaria folgado para todos.
Saímos sábado com o dia clareando, rumo à cidade onde morava
a irmã do meu pai com seus setenta e nove anos de idade. Papai tinha na época
oitenta e um. Eram os dois filhos ainda vivos de meus avós, os mais novos de
onze irmãos, homens e mulheres.
Papai sentou-se no lado direito do banco de trás onde eu
podia vigiá-lo pelo retrovisor enquanto ele olhava as paisagens, para ele
nubladas sempre, das quase quatro horas de viagem. E me dizia, quando via uma
vaca, que na sua época eles acordavam cedo para tirar leite e cuidar da roça.
Papai se surpreendia cada vez que eu lhe perguntava se
estava empolgado para encontrar a Lucinha. Esquecia sempre, não havia jeito, e
não dava pelo esquecimento. Vivia os últimos anos em uma constante névoa, sem
noção do presente e embaralhando o passado. As falhas da memória já não o
incomodavam, ele não tinha mais condição de perceber-se doente.
Chegamos antes do almoço, nos cumprimentamos, minha família
e as famílias de meus primos, as crianças, já nem tão crianças, se conheceram.
Depois de levá-lo ao banheiro sentamos papai num banquinho de jardim, minha
prima trouxe titia que estava na sala assistindo à missa na televisão.
“Apresentamos” os dois, eles só se olharam um instante, depois se deram as
mãos. Ficaram bem meia hora sentados em silêncio, olhando o mesmo vazio, unidos
pelo Alzheimer familiar.
Era mesmo uma cena. Nenhuma palavra, só aquelas mãos velhas:
papai de paletó, titia de vestido de flores. Paramos, nós os filhos, vendo os
dois juntos como um antigo retrato pintado, pendurado numa parede testemunhal,
confirmando a existência de um tronco que nos unia, distante e apagado. Depois
fomos todos comer.
Na confusão da família reunida falou-se de negócios,
vestibulares, nascimentos...
Os dois estavam quietos, ausentes nos cantos da sala. O
velho segurava um copo d’água (de plástico) sentado ao meu lado – quando
viajamos ele não desgruda de mim; e titia apoiava um pratinho de sobremesa nas
pernas.
Às vezes algum filho ou sobrinho experimentava puxar
conversa, aproximar os dois do fio da meada comum entre eles. Perguntaram a meu
pai se ele achava que a irmã estava muito mudada, ele respondeu que nos tempos
em que era criança ele levantava às cinco da manhã para tirar leite e cuidar da
roça. Quiseram saber de titia se da próxima vez ela quem iria visitar seu Sebastião,
a velhinha se inclinou para escutar melhor, e depois apontou o pratinho de doce
com um sorriso: Está muito bom! Nos olhávamos sem muita graça, mas dávamos uma
risadinha, e em seguida um silêncio, um desconforto, depois alguém descobria um
assunto que discutíamos com todo o interesse merecido.
Talvez os velhos não entendessem que a reunião era por causa
deles. A metade das pessoas eles não deviam conhecer, nem de mim tia Lucinha se
lembrou, papai tão pouco reconheceu meus primos. Paciência.
Com a tarde caindo era hora de voltar. Entre primos nos
despedimos com um clima de fracasso. O mais velho dos filhos de minha tia
encolheu os ombros e levantou as mãos, como dizendo: Que se há de fazer?
É que esperávamos efusões de emoção, saudáveis abraços, tapinhas
e implicâncias, e boas histórias de família. O fim do encontro entre os dois se
deu com um simples aperto de mão. Dois velhos acanhados.
Já na volta, dentro do carro, perguntei a meu pai o que
achou do passeio e sobre titia. Ele respondeu:
– Pois é, meu filho, tanto tempo que não vejo Lucinha... A
gente tem que fazer uma visita um dia desses.
Esqueceu. É verdade, esquecera. Passou a tarde com ela e não
recordava nada. É provável que titia também não. Na cabeça deles a última vez
que se viram deve ter sido em alguma oportunidade uns trinta anos atrás, e
mesmo que tenham se encontrado desde então, na lembrança apenas aquele ponto
amarelado restava.
Não digo que não tenha valido nada, se na intenção de recordar um tempo que ia se apagando, mesmo essa experiência tinha se perdido em uma gaveta da memória. Não há realmente mal em esquecer, no fim tudo é esquecimento. Com efeito, gosto de pensar nos dois remontando o passado como um sonho de ontem, que fosse para perdê-lo em seguida, de mãos dadas, olhando a vida com os olhos opaco-azulados da velhice.
Não digo que não tenha valido nada, se na intenção de recordar um tempo que ia se apagando, mesmo essa experiência tinha se perdido em uma gaveta da memória. Não há realmente mal em esquecer, no fim tudo é esquecimento. Com efeito, gosto de pensar nos dois remontando o passado como um sonho de ontem, que fosse para perdê-lo em seguida, de mãos dadas, olhando a vida com os olhos opaco-azulados da velhice.
Texto retirado do livro
Uma cidade inexistente
Juiz de Fora: Editora Funalfa, 2013.
Obs: Postagem realizada mediante prévio contato e autorização do autor.
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